Depois da euforia natalícia, os dias tornaram a ser vulgares. Para sair da minha vulgaridade, descubro a vida e a obra de Honoré de Balzac.
Escreveu mais de uma centena de obras, muitas delas menores, assinadas com pseudónimo, para ganhar dinheiro e pagar dívidas. Aos 27 anos já tinha escrito nove romances. Só a colecção "A Comédia Humana" inclui 95 obras acabadas e outras 48 que não chegou a terminar. Entre outros géneros escreveu peças de teatro, novelas, contos, panfletos e tratados filosóficos. Isto só assim, para vos dar um aperitivo.
De origens modestas, foi desprezado e entregue a uma ama. Na sua primeira infãncia, esteve quatro anos sem ver a família, a favor do seu irmão mais novo, filho ilegítimo do amante da mãe (é preciso ver que a senhora fora dada em casamento aos 21 anos com um velho de mais de cinquenta, como paga de negócios e que por isso nunca foi capaz de amar o marido ou de lhe ser fiel).
Mais tarde, à excepção da sua progenitora, burguesa com negócios mercenários, que lhe emprestava dinheiro à distância (sim, emprestava, o filho chegou a dever-lhe 50 mil francos!) teve pouco ou nenhum apoio da família. O pai mandou-o para um colégio interno bastante austero e rigoroso onde Balzac, com uma mesada ridícula (que mais tarde o pai cortou), passava vergonhas junto dos colegas mais abastados. Era mau aluno, indisciplinado, e mandavam-no frequentemente para uma masmorra, de castigo. Foi aí que aproveitou para ler tudo o que apanhava pela frente, até dicionários, que lia com gosto, à falta de outros livros. Chegou a ser enviado para casa num estado de quase coma. Ao vê-lo, uma parente comentou: "é neste estado que nos devolvem um rapaz tão bonito!".
Só uma das irmãs acreditou desde cedo no seu talento e no sonho em tornar-se escritor e lhe desejou muito sucesso, na sua vida na capital. Mas no fim da sua adolescência o pai pô-lo no mercado de trabalho. Depois de Honoré ficar farto de leis ao trabalhar como estagiário numa sociedade de advogados através de um amigo do pai, ao longo de três anos, recusou sociedade e mudou-se para umas águas-furtadas em Paris, verdadeiramente espartanas, a viver com quase nada e onde apenas contou com o auxílio de uma senhora idosa. No romance "O Notário", escreveu sobre um rapaz obrigado a lidar com "as rodas oleosas de cada fortuna, a disputa horrenda de herdeiros sob corpos ainda não totalmente frios, e o coração humano às voltas com o Código Penal.". Confessa que ali seria "como todos os outros, vivendo com fome num lugar onde nada lhe davam para satisfazer o seu apetite."
Tinha vinte anos quando confessou essa sua frustração e a intenção de se tornar escritor, pois desesperava-o a ideia de ser "um funcionário, uma máquina, um mercenário numa escola de equitação, comendo e bebendo e dormindo em horários fixos."
Aos vinte e dois anos conseguiu publicar alguns contos, com a ajuda de um amigo. Ao fim de várias obras mediocres, com os cobradores à porta e os editores à perna, Balzac trabalhava uma média de vinte horas por dia (!) e ainda assim arranjou maneira de serem consideradas obras-primas por alguns críticos. Quando mais tarde descobriu o projecto colossal d "A Comédia Humana", entrou pela casa da irmã adentro a dizer "estou prestes a tornar-me num génio!"...e tinha razão. Assumiu as obras que escrevera anteriormente e começou a assinar como "Honoré de Balzac", até para dar um ar mais aristocrático ao seu nome e esconder as origens modestas. Tornou-se mestre na análise das classes sociais, a construir personagens e a descrever ambientes e lugares, criando as famosas mulheres "balzaquianas" e influenciando autores como Flaubert, Proust, Zola, Italo Calvino, Dickens, Dostoievski, Henry James, Camilo Castelo Branco, Eça, Machado de Assis...chegava a dedicar-se quinze horas a um excerto, rabiscando sobre uma ardósia, escrevendo, apagando, rasurando, reescrevendo num estado quase febril, até ficar satisfeito com aquele pedaço de prosa, limpo, simplificado, puro.
Escreveu, viajou, gastou, esbanjou, sem nunca parar de escrever.
Na verdade era feio e gordo, mas viveu rodeado de mulheres que se apaixonavam por ele. Quando a fortuna chegou, gastou-a numa vida viciosa e entregou-se a projectos que tinham como base boas ideias, que não conseguia levar a bom porto por não perceber nada de negócios (por exemplo, edições extremamente baratas, de papel de má qualidade, nomeadamente das obras compiladas de Molière; a exploração de minas de prata...que afinal não tinham prata; uma sociedade com uma amante numa impressora que lhe deixou dívidas tremendas, etc.).
Morreu aos 51 anos, pouco depois de ter finalmente contraído matrimónio com uma nobre polaca que amou e namorou durante dezoito anos por correspondência, e com quem fez longas viagens clandestinas, uma vez que a senhora era casada e só enviuvou e pôde casar com ele quando Honoré tinha cinco meses de vida.
Já não se ama assim. Já não há vidas nem homens destes. Já não se constrói uma obra literária assim, a escopro e martelo, ao longo de uns breves e admiráveis trinta anos de escrita.
Somos tão pequeninos.
De origens modestas, foi desprezado e entregue a uma ama. Na sua primeira infãncia, esteve quatro anos sem ver a família, a favor do seu irmão mais novo, filho ilegítimo do amante da mãe (é preciso ver que a senhora fora dada em casamento aos 21 anos com um velho de mais de cinquenta, como paga de negócios e que por isso nunca foi capaz de amar o marido ou de lhe ser fiel).
Mais tarde, à excepção da sua progenitora, burguesa com negócios mercenários, que lhe emprestava dinheiro à distância (sim, emprestava, o filho chegou a dever-lhe 50 mil francos!) teve pouco ou nenhum apoio da família. O pai mandou-o para um colégio interno bastante austero e rigoroso onde Balzac, com uma mesada ridícula (que mais tarde o pai cortou), passava vergonhas junto dos colegas mais abastados. Era mau aluno, indisciplinado, e mandavam-no frequentemente para uma masmorra, de castigo. Foi aí que aproveitou para ler tudo o que apanhava pela frente, até dicionários, que lia com gosto, à falta de outros livros. Chegou a ser enviado para casa num estado de quase coma. Ao vê-lo, uma parente comentou: "é neste estado que nos devolvem um rapaz tão bonito!".
Só uma das irmãs acreditou desde cedo no seu talento e no sonho em tornar-se escritor e lhe desejou muito sucesso, na sua vida na capital. Mas no fim da sua adolescência o pai pô-lo no mercado de trabalho. Depois de Honoré ficar farto de leis ao trabalhar como estagiário numa sociedade de advogados através de um amigo do pai, ao longo de três anos, recusou sociedade e mudou-se para umas águas-furtadas em Paris, verdadeiramente espartanas, a viver com quase nada e onde apenas contou com o auxílio de uma senhora idosa. No romance "O Notário", escreveu sobre um rapaz obrigado a lidar com "as rodas oleosas de cada fortuna, a disputa horrenda de herdeiros sob corpos ainda não totalmente frios, e o coração humano às voltas com o Código Penal.". Confessa que ali seria "como todos os outros, vivendo com fome num lugar onde nada lhe davam para satisfazer o seu apetite."
Tinha vinte anos quando confessou essa sua frustração e a intenção de se tornar escritor, pois desesperava-o a ideia de ser "um funcionário, uma máquina, um mercenário numa escola de equitação, comendo e bebendo e dormindo em horários fixos."
Aos vinte e dois anos conseguiu publicar alguns contos, com a ajuda de um amigo. Ao fim de várias obras mediocres, com os cobradores à porta e os editores à perna, Balzac trabalhava uma média de vinte horas por dia (!) e ainda assim arranjou maneira de serem consideradas obras-primas por alguns críticos. Quando mais tarde descobriu o projecto colossal d "A Comédia Humana", entrou pela casa da irmã adentro a dizer "estou prestes a tornar-me num génio!"...e tinha razão. Assumiu as obras que escrevera anteriormente e começou a assinar como "Honoré de Balzac", até para dar um ar mais aristocrático ao seu nome e esconder as origens modestas. Tornou-se mestre na análise das classes sociais, a construir personagens e a descrever ambientes e lugares, criando as famosas mulheres "balzaquianas" e influenciando autores como Flaubert, Proust, Zola, Italo Calvino, Dickens, Dostoievski, Henry James, Camilo Castelo Branco, Eça, Machado de Assis...chegava a dedicar-se quinze horas a um excerto, rabiscando sobre uma ardósia, escrevendo, apagando, rasurando, reescrevendo num estado quase febril, até ficar satisfeito com aquele pedaço de prosa, limpo, simplificado, puro.
Escreveu, viajou, gastou, esbanjou, sem nunca parar de escrever.
Na verdade era feio e gordo, mas viveu rodeado de mulheres que se apaixonavam por ele. Quando a fortuna chegou, gastou-a numa vida viciosa e entregou-se a projectos que tinham como base boas ideias, que não conseguia levar a bom porto por não perceber nada de negócios (por exemplo, edições extremamente baratas, de papel de má qualidade, nomeadamente das obras compiladas de Molière; a exploração de minas de prata...que afinal não tinham prata; uma sociedade com uma amante numa impressora que lhe deixou dívidas tremendas, etc.).
Morreu aos 51 anos, pouco depois de ter finalmente contraído matrimónio com uma nobre polaca que amou e namorou durante dezoito anos por correspondência, e com quem fez longas viagens clandestinas, uma vez que a senhora era casada e só enviuvou e pôde casar com ele quando Honoré tinha cinco meses de vida.
Já não se ama assim. Já não há vidas nem homens destes. Já não se constrói uma obra literária assim, a escopro e martelo, ao longo de uns breves e admiráveis trinta anos de escrita.
Somos tão pequeninos.