Hoje, depois de algumas reacções ao 2º aniversário do blog, inauguro uma nova etiqueta: "CARTAS DE LEITORES". É a melhor Celebração que encontro.
A que publico aqui hoje nasceu do post dedicado a John Barry, compositor das bandas sonoras dos filmes do 007 e do maravilhoso filme "OUT OF AFRICA", no dia da morte do compositor.
Mário de Sousa disse...
"Sem dúvida que existem filmes que nos causam arrepios, e pelas melhores razões. O John Barry reuniu talvez os maiores filmes, ícones de várias gerações. Conseguiu a proeza maior de ser transversal a várias delas e morrer actual.
De repente, a evocação do 007 fez desfilar pela minha mente recordações antigas de um tio, cunhado da minha mãe, amante incondicional das coisas boas da vida e do 007 também. ‘The Bond way of life’ era uma bandeira para ele. Morreu muito novo, talvez por ter vivido a vida de um modo mais intenso do que devia. Assoprou tanto na brasinha que todo o calor se dissipou num riscar de fósforo.
Vivia com a minha tia e as minhas primas em casa da minha avó, e foi lá que conheci a maior biblioteca de livros policiais e espionagem da minha vida. Foi com ele que aprendi a gostar de Dick Haskins, Ellery Queen, Edgar Wallace, Jack Hunter e a incontornável Agatha Christie. A minha avó arreliava-se com ele porque ‘aquilo não eram livros para uma criança’, mas eu era o filho que ele não tinha.
Estava-se no final da década de sessenta do século passado e o cinema S. Jorge e o Eden faziam as delícias dos amantes das ‘girls Bond’ e o meu tio Júlio não falhava uma soirée seguida de umas imperiais na Solmar ou na Trindade. Depois, ao outro dia ao almoço, contava-me aquelas aventuras rocambolescas e mostrava-me os livros do Ian Fleming; e eu ficava deliciado, em êxtase, a olhar para aquelas raparigas, invariavelmente de vestido comprido, saltos altos e uma perna elegante a deixar-se adivinhar por uma saia meio aberta ou meio fechada. Ele, o James Bond, impassível empunhava uma pistola de cano comprido.
Que raiva que eu sentia por não ter 16 anos para poder ir ao cinema com ele. Então, prometia-me que assim eu tivesse idade, me levaria e me explicaria detalhes que agora ainda não tinha idade para compreender.
Não teve tempo para cumprir a sua promessa. Morreu bem, se assim se pode dizer; um ataque cardíaco fulminante no emprego. Naquele tempo, ainda não havia 112, nem desfribiladores, nem paramédicos de luvas brancas e coletes fluorescentes. Morreu sozinho, no chão do escritório onde o estenderam e lhe desapertaram o nó da gravata.
Quando me disseram, chorei de tristeza e o James Bond perdeu para todo o sempre, o encanto que para mim tinha. Descobri da pior maneira, que o meu herói não era ele mas sim o meu tio Júlio.
16 de Fevereiro de 2011 01:53
(...)
No verão de 2009 tive a oportunidade de visitar a Casa Museu de Karen Blixen em Rungstedlund na Dinamarca. Vivi por essa altura, talvez os momentos mais emocionantes da minha vida.
É muito difícil de explicar o que é África, o que e o que se sente quando se lá está, mas principalmente o que se sente quando A deixamos. É uma sensação de saudade, de perda, de orfandade. É uma sensação sufocante que nos tira as forças, mas que nos faz perceber o quanto é doloroso estar-se ‘ Out of Africa’!
Não conheço os planaltos do Kenya mas tenho presentes as xanas de Angola, os planaltos da Namíbia, as planícies de Coldra, as florestas de Casamansa, os mangais das Guinés. A magia que exerce sobre nós é qualquer coisa de inexplicável, tão inexplicável como os acordes de ‘Out of Africa’. Nunca um trailer foi tão devastador para a minha sensibilidade como o deste filme.
África não se explica, vive-se; não se entende, aceita-se; não se apreende, entranha-se; e tal como uma moléstia ‘boa’, toma conta de nós para nunca mais nos largar. É uma ‘doença’ crónica, inexplicável, arrepiante; é uma droga dura que nos consome por apropriação.
África, é também uma paixão, um céu, um mapa de estrelas, um sol, um pôr-do-sol, ou um renascer; África só pode ser sem dúvida, o berço da humanidade. Só isso pode explicar o seu mistério.
É muito difícil entender as palavras ‘I had a farm in Africa…’. É iniciático… Só quem lá esteve, só quem lá vive ou viveu, só quem se rendeu aos seus desígnios consegue entender todo o misticismo se não a tragédia, destas palavras. É passado e o passado em África dói…
Vera, grato por lembrar John Barry.
John obrigado por tudo o que fizeste."
(MÁRIO DE SOUSA, meu "aluno" no curso de Escrita Criativa "Escrevo o meu primeiro conto", que conheci entre Maio e Julho de 2010, e que brinda este blog com cartas maravilhosas como esta, enviadas desde terras africanas)
2ª Imagem: vista parcial da casa de Karen Blixen no Quénia.
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