"Um tempo velho. E a sua própria casa, a casa da sua mãe e da sua velha avó, que conheceu ainda entre as paredes e um cajadinho de vários nós. Igual àquela ali defronte. Todas as outras paredes. Da grossura de braçadas de gente, portas implantadas em umbrais de castelo, mas cheias de nada. De terra, peso, pedra miúda, argamassa de areia velha e cal viva, amortecida de anos, minada de bicheza rastejante, voante, pequenos quadrúpedes roedores, ratos, bichos que nunca aparecem, mas existem e têm dentes afiados, porque na noite há aqueles tris tris que não se suspendem nem batendo forte com o sapato. É a costureirinha, ainda a penar. Agora ouves. É a tesoura sobre a máquina. É o seu pedal. São bichos. Minha mãe. Como estes, os que comem a madeira, os carpinteiros que não se vêem, não têm barriga nem patas, apenas abocanham e rilham, rilham. E têm orifício de cu. A prova disso é esta poeira, aos montões de manhã; quando se bate a cama. Assim os outros, os que devoram as paredes, comem a cal que em tempos foi viva, e a terra. A chuva depois do telhado ido pelo vento. A chuva entra e abre as fendas, separa as pedras, a caminho do chão. Abaladas a gente, mãe, a nossa casa cairá assim. Não te mortifiques antes de tempo. Uma mortificação de cada vez. Agora porque ele vai ir. Depois porque tarda a vir. E o teu desejo é casar. Depois a boda e o dinheiro para ela. Só depois te mortificarás por pensar que estás longe desta casa. Na ordem das coisas essa será a quinta mortificação. Não mistures os sofrimentos. Dizia o prior, teu pai. Mortificando-se por me ter e por não me ter. E agora a mim me mortifica a ceia. Duas bogas de sal, quatro batatinhas. Guarda a limpeza que é quase noite. Carminha. Vires pôr-te aqui, olhando as nuvens vermelhas, quando afinal. Chegou quem é exactamente a tua medida."
(LÍDIA JORGE, in "O Dia dos Prodígios", primeiro romance publicado da autora, em 1980)
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