Maria ajeitou as almofadas da cama e sentou-se a beber o chá de camomila e a comer as bolachas. Gostava de prolongar aquele momento, depois de a auxiliar trazer a pequena ceia que acompanhava a toma dos medicamentos, antes de dormir. Pegou no pacotinho de bolachas, abriu e tirou a primeira. Como rato, roeu, com método e moderação, meio centímetro a toda a volta, até atingir o desenho geométrico que tinha por hábito reproduzir a esferográfica, no seu caderno de capa roxa. O rebordo da bolacha apresentava-se agora rugoso e irregular. Maria usou a língua para limpar os vestígios de massa farinhenta, colados ao céu-da-boca, entre os dentes, nas gengivas. Ao mesmo tempo, observava o vapor saindo da chávena, a arrefecer sobre o tabuleiro. Quando considerou terminada a missão de limpeza, tornou a enfiar a bolacha na boca. Desta vez repetiu a operação com muita cautela, até chegar aos oito minúsculos orifícios arrumados em duas semicircunferências. Os incisivos não avançaram mais do que o necessário, para não se arriscar a morder um dos dezasseis furos. Não perdoaria a si mesma tal distracção. Era forçoso ir mordiscando a bolacha com extremo cuidado, esculpindo uma segunda bolacha mais pequena, onde poderia ler-se a palavra “Maria”, central, e sentir-se a textura dos pequenos pontos inscritos na massa. Maria posicionou à frente dos olhos o que restava do biscoito, para admirar a sua obra: ali estavam eles, intactos, rodeando as letras de pés duplos, os quais lembravam pezinhos de pássaros. O “I”, de uma só pata, podia ser um flamingo de cabeça escondida, um espeto ou um osso delgado, posto ao alto. Os “A’s” assemelhavam-se a cabanas de índio, duas pessoas de cabeças encostadas, a darem um passou-bem. Com uma satisfação infantil, Maria trincou, enfim, as duas extremidades que formavam um total de dezoito furos e só se deteve quando, na ponta dos dedos, sobrou apenas a palavra “Maria”. Tornara-se numa habilidosa artesã. Já só raramente lhe faltava o jeito. Estudando o brilho dos seus olhos, seria natural pensar-se que o pedaço minúsculo de bolacha constituía, quem sabe, o prémio pela sua minúcia, mas não. Esses poucos centímetros feitos de farinha de trigo, açúcar, gordura de palma, xarope de glucose, lecitina de girassol, bicarbonato e metabissulfito de sódio e glúten – há tantos anos gravados com o mais português dos nomes – eram a parte que Maria deitava ao lixo. Caso as senhoras da limpeza se dessem ao trabalho de vasculhar o que recolhiam diariamente na manhã seguinte, às sete em ponto, iriam encontrar, no fundo do caixote de plástico, seis Marias desprezadas.
uma bela amostra da tua escrita...:)) que sei como é fantástica:) Sou uma sortuda!
ResponderEliminarBeijinhos, amiga
Querida Vera,
ResponderEliminarConcordo com a Rosarinho. Muito muito bom!!
Beijinhos,
Paula Nowell
Querida Paula, que surpresa tão boa, encontrar-te aqui! O mundo virtual tem esta coisa maravilhosa de anular distâncias.
ResponderEliminarMuito obrigada, ainda bem que gostaste :)
Beijos com saudades,
Vera