Como escolhi sair da cidade e viver num lugar recôndito que nem aldeia é, tenho uma vizinha que é daqueles espécimens rústicos. Atarracada, feições anónimas, o perpétuo avental de flores, pernas arqueadas, a pele esturricada e engelhada pelo sol, as mãos calejadas pela vida dura de quem não as usa para escrever nem para tratar das petúnias de luvas de jardinagem às florzinhas - como é o meu caso -, mas sim para lavar roupa no tanque, cavar e semear a terra, cortar lenha.
Falávamo-nos só de bom-dia e boa-tarde. Pouco mais. O único assunto de conversa eram os cães: Joana, a cadela da D. Maria José, e os nossos. Até ao dia em que ela, ao ver-me fazer festas à cadela (que me mete dó por estar encerrada na passagem da vizinhança, num espaço que pouco passa de 1m2), chega-se e diz-me:
- Olhe, não me faça festas à cadela.
- ...?...
- Ela está aqui para dar sinal, ela assim fica mole, não guarda.
Revoltada e já refeita do espanto, reagi assim:
- Ai não quer que eu faça festas à Joana? Tá bem.
Virei costas e fui-me embora.
Um dos poucos prazeres que o desgraçado do bicho tinha, sendo uma golden labrador rafeira, ou seja, mimuças por natureza, eram as minhas festinhas que ela antecipava ao ver-me passar, pois conhece-me desde pequenina e claro que, como animal inteligente que é (o mesmo não se pode dizer da dona), sabe distinguir perfeitamente a senhora simpática de um qualquer estranho que passe: pelo aspecto, pelo faro, enfim, é para todos óbvio, certo?
Passaram-se várias estações sem que eu nunca mais correspondesse à atitude dengosa da cadelinha Joana, encostada à rede, de rabinho a dar a dar, à espera das festas, e sem que as duas vizinhas se tornassem a falar. Só de pensar na sua proibição ficava irritada: como é que se pode ser tão estúpido?
Até que há dias a Joana andava solta e veio atrás de mim, quando eu me preparava para fazer a caminhada habitual, em que me afasto vários quilómetros da casota dela. Ao fim de menos de 1 km, voltei para trás, para a devolver a casa, pois não pretendia deseducá-la, fazê-la afastar-se demasiado de casa, provocar o seu atropelamento ou uma fuga.
- D. Maria José...?
Ela apareceu e perguntou-me:
- Estava a incomodá-la?
(A Joana, feliz da vida e já toda enlameada, saltava à minha volta, sujando-me as calças todas, claro, e eu a rir e a fingir-me zangada)
- Não, D. Maria José, a Joana nunca me incomoda. Venho só dizer-lhe que se calhar é melhor prendê-la agora, porque ...
E lá expliquei.
Adoptando a postura de uma menina de escola arrependida, fazendo-se ainda mais pequenina do que já é, a velhota disse:
- Podemos voltar a ser amigas? A senhora desculpe...
- Desculpo o quê, D. Maria José?
- Aquilo que eu disse no outro dia...ficou zangada comigo, pois...
("no outro dia" foi quase há um ano)
- Eu? Eu nunca tive nada contra si, D. Maria José. Mas confesso que estranhei, sabe que a Joana me conhece perfeitamente, não vai deixar de lhe guardar a casa por eu lhe fazer festas. Só que me faz pena vê-la aqui sempre presa, percebe?
- Eu sei, desculpe, sim? Eu é que não estava boa naquele dia, sabe? A senhora desculpe. Podemos ser amigas?
E eu lá respondi que sim, sabendo que não posso contar com ela para jogar trivial pursuit, ajudar-me a preencher a declaração electrónica do IRS, ir aos saldos, ou partilhar uma série de coisas que a desgraçada nem sabe que existem, como, por exemplo, este blog.
- Qualquer coisa que a senhora precise, esteja à vontade.
E eu retribuí a oferta da pobre mulher, sentindo-me aliviada por ver que o mundo ainda fazia algum sentido.
E ela:
- Não me esqueço do que a senhora e o seu marido fizeram por nós, sabe? Não me esqueço!
(Referia-se às boleias que lhes demos até ao Centro de Dia, a ela e ao marido, para não terem de ir a pé)
E assim tornei a fazer festas à Joana. Voltámos ao bom-dia e ao boa-tarde e metemos agora dois dedos de conversa de vez em quando. Boleias já não dou, pois o marido da D. Maria José morreu e ela já não vai lá sozinha. A filha aparece de vez em quando, muito atarefada e carrancuda, num belíssimo carro que destoa, ali estacionado defronte à casinha caiada e modesta.
Agora, quando passo pela D. Maria José e a cumprimento, vendo-a estender as roupas humildes numa corda miserável ou cortando lenha como uma valente, não posso deixar de pensar que a solidão desta mulher deve ser imensa. Ainda bem que tem a Joana. Reparei que ultimamente a leva para dentro de casa mais vezes. E sempre que vejo a casota vazia dou por mim a sorrir.
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