O Chico saltou outra vez a vedação. Desta feita estávamos prevenidos e agarrámo-lo, numa acção conjunta, antes que se lançasse por essas terras adentro. Resultado: novas soluções de recurso, com ramos de pinheiro atravessados, a impossibilitar o salto deste cão de caça enxertado com osso de canguru. O serra da estrela Gastão, à trela, fez de cobaia para o provocar, de modo a descobrirmos por onde é que o malandro do outro se escapava...desta vez. Quando lhe trocamos as voltas, solta latidos indignados, como quem não se conforma com a nossa traição. Esperto como um Chico, quase consigo ver-lhe o balão sobre a cabeça, com novos planos de engenharia. Já que vieram os dois cá para fora, eu e o meu filho aproveitámos a tarde de outono solarenga para passeá-los no pinhal.
Houve chá Earl Grey com biscoitos, e spaghetti com bacon, tomate e natas. O filho andou a tratar de me arranjar os tão desejados episódios da mini-série britânica "Any Human Heart", centrada na vida de um escritor escocês (Logan Mountstuart), que atravessa várias décadas do séc. XX, movimentando-se entre Londres e Paris. Eu fui até Veneza, fazendo revisão de texto do que será o primeiro livro de literatura de viagens de uma grande amiga. Ao computador, acompanharam-me as músicas de Gabriel Yared, instrumentais, para que a concentração não se quebrasse. Ler, fazer revisão de texto e escrever, só mesmo com instrumentais; de contrário, a voz foge-me para as palavras e lá vou eu, para longe do que estou a fazer.
O filho fez os trabalhos de casa de Acústica e a sua primeira hora de criação musical para a cadeira de Análise e Composição, como aluno integrado no Conservatório Nacional de Lisboa. Escolheu, para meu orgulho e ternura, uma quadra de uma letra inspirada na Idade Média, que a mãe escreveu quando ele tinha apenas três anos de idade, quando andava a ler "A Obra ao Negro", de Marguerite Yourcenar. Para este trabalho, o pai tinha-lhe dado um livro do Pessoa, para que escolhesse versos que se adaptassem à época medieval, mas o meu filho acabou por fazer a troca. Ficou a perder, é claro, e eu a ganhar.
"Num tempo cheio de superstição
Foi aprendiz, camponês, senhor
Tentou ser gente, sem lar ou prisão
Mestre, poeta, malfeitor"
Compôs, escreveu na pauta, tocou ao piano e cantou, com atenção à métrica, à intensidade e ao que caracterizava a música sacra que se compunha na época, ainda antes de ter sido criado o canto gregoriano. Demorou cerca de uma hora e foi a sua primeira composição "por obrigação", qual Antonio Salieri escrevendo para a corte de Viena. E eu uma mãe babada, a fotografá-lo de lápis na boca e auscultadores, a enquadrar na imagem os seus dedos ainda desajeitados sobre o teclado. Ontem foi ouvir Gustav Mahler no S. Carlos, com amigos do Conservatório. No intervalo, após a actuação de Pinho Vargas, a directora do Conservatório reconheceu-o na fila K e mandou alguém buscá-lo, para o levar ao camarote, de onde assistiu ao concerto propriamente dito, emocionando-se com as peças belas e tristíssimas de Mahler, como o "Adagietto", o 4º andamento da 5ª sinfonia.
Isto num sábado à noite.
Vai completar 16 anos na próxima 4ª feira, o que me faz pensar que devo ser a modos que abençoada.
Deixo-vos na companhia de Mahler e destas imagens, que nos fazem flutuar por paisagens de sonho. Porque sonhar é preciso.
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