sexta-feira, 12 de julho de 2013

J. H. Santos Barros

FAZER VERSOS DÓI

Pregar um prego, lavar pratos, cortar a erva
custa. Mas nunca nada me custou tanto que
carregar um verso das coisas mais difíceis. A fazer
do outro lado da literatura os nós do mundo.
E a desfazê-los. Para os refazer simples
andei por missas, por mares e por selvas -
fossem as puras florestas do desejo ou caves de prédios muitos altos.
Nunca rezei por vós nem por mim porque Deus não estava,
mas em todos os sítios encontrei poesia
e dei-me a fazer versos e a fazer amor como quem se imola
e não se amola com a melancolia dos vizinhos
a vêr-me apanhar o autocarro ou a chegar
da vida burocratizada que é a profissão
de organizar processos de velhice
para os que vão morrer daqui a pouco.
Pregar um prego custa, se custa! E mais deve custar
oito horas diárias de cadência bruta nas fábricas da loucura:
(eu te digo isto, operário por quem não choro nem rezo e
nem te desprezo ao ponto de cantar as glórias do teu amanhã que não há.
porque sei que tu sabes ser a Obra tua).
Mas apalpar o verso disso também custa. A mim,
não é tanto a dor explorativa que dói mas o verso que explode
dolorosamente por trás e pela frente e em diagonal
no poema. Agora que começo a escrever a minha morte,
sabem-me os versos aos verões da infância que não houve
sabem à humidade das mesas frias onde vi
os poetas outonais que não conheço fingir que choravam
e recebiam das damas, através dum lenço
a noticia rendilhada da sua condenação à morte.
É certo: tudo aborrece quando já não há canções
iludindo a aspereza da voz que primeiro as cantou
quando se morre como o Ruy Belo de fazer versos.
Venham-me com cantigas!
Digam-me ainda o «mar» é «português»
o Senhor aguarda os «corações» que se elevam ao «alto»
as selvas servem de pulmões do mundo e não há buracos
nos lugares onde deixei bombas e me mataram
e vi a «morte com um sorriso nos lábios»!
Há um frio real nestes dedos e o verso de Fevereiro não os aquece.

(de 'S. Mateus, outros lugares e nomes', Vega, 1981)


J.H. Santos Barros foi um poeta açoreano. morreu em 1983, num acidente de carro, juntamente com a sua mulher poetisa, Ivone Chinita.)

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