terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Ócio, Thoreau e Miss Potter

Quatro dias sem sair de casa. Roçando ao de leve os trapos, a loiça, as refeições, o pó. O resto tem sido ócio, escrita e leituras.
O corpo amuou e deu-me a chuva e o frio como desculpa, para se entregar à preguiça. Dias de ócio, confesso, a preparar o fôlego para o ano novo. Depois do pequeno-almoço, deito-me no sofá com uma chávena de café bem quente e um bombom “Rafaello”, os cães aos meus pés, a chuva a cair lá fora e, nas mãos, “Walden ou a Vida nos Bosques”.

Thoreau compreende-me bem, adivinhando-me a alma que, pedindo tão pouco, pede demasiado. O mundo exige que lutemos por mais coisas que não estas que tenho: é urgente possuir um carro melhor, mais dinheiro na conta, mais trabalho, mais móveis, mais trapos. Mas já tenho tudo o que preciso e a bênção do tempo livre, que o mundo não tem. O carro anda, esforçado, e os móveis e trapos de que disponho preenchem-me totalmente o espaço e o corpo. Desejar mais é sufocar. Prefiro respirar o arvoredo que habita à minha frente, o ruído da chuva nas vidraças, as corujas e os corvos de madrugada. À tarde acende-se a lareira com sobro e azinho, sobre o crepitar das pinhas roubadas ao leito de caruma e de folhas de eucalipto que, de tão próximas e húmidas, perfumam o ar que ofereço aos pulmões; um chá de bergamota, torradas e compotas caseiras de tomate e de pêssego. A noite chega e o ninho fecha todas as janelas, a esconder-se do frio. A árvore de natal brilha mais, com as luzinhas cor de pérola, que reflectem as esferas douradas e vermelhas. No topo, um ninho verdadeiro de um pássaro ingénuo que escolheu esta árvore para se instalar e que ali foi deixado, a fazer as vezes de estrela ou de anjo. Porque não, se os pássaros habitam os céus, como as estrelas e os anjos? Depois de um jantar tardio, agarro-me novamente a Thoreau, aconchegando-me a uma manta de quadrados. Pouso o livro de vez em quando, para espevitar o lume. O vento assobia, a chuva lança-se às janelas, sem conseguir entrar na minha cabana.


Antes de dormir, revi “Miss Potter”.

Quando adormeci, tinha ainda nos olhos as paisagens verdejantes de Sussex, na Escócia, a decoração romântica das casas, com mil pormenores irresistíveis, os lagos, as quintas cobertas de hera. Os patos, gansos, sapos, porcos, coelhos e ouriços de Beatrix pareciam desejar-me bons sonhos e eu acenei-lhes de volta, explicando que o melhor sonho era estar acordada e poder viver com tudo isto no coração.








Imagem de Henry David Thoreau, a partir de um daguerreótipo de 1839.
Imagem de Beatrix Potter roubada aqui:
http://gonnabebig.wordpress.com/2008/07/28/beatrix-potters-birthday/

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Tradução

Pelos comentários que têm deixado e através dos serviços proporcionados pelo Sitemeter (contagem de visitas do blog), já havia estranhado o facto de ser lida por um punhado fiel de sul-americanos, pensando, Como é que estes tipos têm pachorra para me ler em português e deixar comentários?, mas hoje descobri porquê:
O serviço "blogger" do Google tem a possibilidade de traduzir o conteúdo inteiro de um blog no idioma de cada leitor. Não acham maravilhoso? Isso torna o que escrevemos em algo de universal, como uma imagem. Se calhar estão fartos de saber, mas para mim, que ando sempre a leste do Equador (literalmente! E, by the way, também tenho leitores lá! Pfff....), é novidade. Aqui fica o site e, abaixo, o link com o post de hoje, já traduzido, a título de curiosidade: verão que o conteúdo do blog está traduzido na íntegra:
http://translate.google.com/translate
http://translate.google.com/translate?hl=es&sl=auto&tl=es&u=http://veravilhena.blogspot.com/2009_12_01_archive.html&rurl=translate.google.com&twu=1

E em jeito de presente de Natal atrasado, deixo também um site extremamente útil, para quem precisar de traduzir qualquer coisa em qualquer língua. Na coluna da esquerda, se for o caso, seleccionem mesmo o "Português (pt)", pois a tradução funcionará melhor do que em "auto-detect". Obrigada, Nanã.

http://tradukka.com/

domingo, 27 de dezembro de 2009

Solidez, solidariedade e solidão

Apesar de viver na zona Oeste do país, o meu ninho não sofreu danos com o famoso temporal que se deu há dias, graças ao monte e aos eucaliptos e pinheiros que o protegem das intempéries. Muitos dos vizinhos, donos de estruturas, esplanadas e estufas de exterior, não tiveram a mesma sorte. O meu marido foi comprar cigarros há pouco e regressou com este conto de natal, que nos chega atrasado: ao avaliarem os estragos causados pelo ciclone, os habitantes da aldeia mais próxima, que é aberta e desabrigada, não foram trabalhar no dia seguinte. Em vez disso, trataram de repor telhas; consertar telhados de zinco e vedações; recolher mesas e cadeiras tresmalhadas; varrer vidros e disfarçar os estragos; pregar madeiras soltas. Isto poderia não ter nada de extraordinário, não fosse ter sido uma operação levada a cabo nas casas uns dos outros, pois todos ajudaram todos, como se fossem um só. Agora venham cá falar-me da morte da solidariedade entre os homens, que eu atiro-lhes com esta história. Verdadeira, graças a deus. Senti-me orgulhosa, envergonhada e só. Orgulhosa por viver há três anos junto desta gente, envergonhada por viver tão mergulhada na minha própria e minúscula vida, que só hoje soube, e só por ninguém ter pedido emprestadas as minhas mãos. Será porque a minha casa, sólida como a do porquinho Cícero, faz de mim um ser marginal? No próximo temporal, quando o sol regressar, hei-de ir ao café, esgravatar a vida dos outros, a perguntar se alguém precisa de ajuda. Até porque a solidez da minha casa não é eterna, mas a solidão pode ser.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Escrita com verdade

Tenho-me sentido culpada por ter quebrado, nos últimos dias, a regra "nulle dies sine linea" ("nem um dia sem uma linha"), que estipulei para mim própria no dia e que iniciei este blog, há nove meses. A verdade é que, mais verdadeiro do que não falhar, é escrever algo com vontade. A avalanche do Natal roubou-me a paz e a disposição. Há coisas que não se devem fazer só por fazer: amor, cantar, sorrir, dançar, matar. São expressões do corpo e da mente demasiado importantes para serem feitas sem alento, com indiferença. A fazê-las, que haja bons motivos. Só assim somos justos e verdadeiros.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A Loja do Menino Jesus


Entrei e vi um anjo no balcão.
Maravilhado perguntei-lhe: "Anjo, o que vendes tu?"
Ele respondeu-me: "Todos os dons de Deus".
Contemplei a loja e vi jarros com compaixão, frascos com fé, pacotes com esperança, caixinhas com amor, potes com sabedoria...
Perguntei-lhe: "São muito caros?"
Respondeu-me: "Não, é tudo de graça."
Então, enchi-me de coragem e pedi: "Por favor, Anjo, quero uns quilos de perdão, muito amor, uma caixa com fé, um bocado de felicidade e um pacote de salvação eterna para mim e para a minha família."
Então o Anjo preparou um pequeno embrulho, tão pequeno que cabia na palma da minha mão, e entregou-me.
Espantado, mais uma vez perguntei-lhe: "Está tudo aqui?"
O Anjo respondeu-me, a sorrir:
"Sim. Na nossa Loja não vendemos frutos, apenas sementes.”
Obrigada, Bé, por esta pérola natalícia.
Imagem:  "Anjos na Floresta", por Mírian Warttusch

VOTOS DE UM NATAL FELIZ PARA TODOS

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Hot Hot


O edifício do Hot Clube ardeu esta madrugada. Parece que os estragos foram tais, que não há garantias de que o clube possa voltar ao activo. O piano acústico e o contrabaixo terão ardido? Felizmente, o espólio do Luís Villas-Boas já havia sido retirado. Cheguei a estudar na escola, no piso de cima, e já na época, por volta de 1991, nos arriscávamos a levar com bocados de caliça na cabeça, durante as aulas. Há muito que a escola se mudou para o edifício da Orquestra Metropolitana de Lisboa, em Belém, mas o clube original na Praça da Alegria, com sessenta anos de idade e uns minúsculos 48m2, é (era?) já uma instituição. Por ele passaram monstros como Count Basie, Dexter Gordon e Sarah Vaughn. Pat Metheny gosta(va) de passar lá e tocar, em jam session, depois dos seus concertos em Lisboa.  Será que os adeptos deste velho clube, que atravessou tantas gerações, ficaram sem o seu cantinho de improviso?
Roubei a imagem aqui:
http://coiso.wordpress.com/2007/06/21/reabertura-do-hot-clube/

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Filosofices da Nocas

Estou de volta e trago algo de singelo e irresistível:

A minha sobrinha Nocas, de 4 anos:
- Ò Joana, se é preciso sempre uma mãe para fazer um bebé, como é que nasceu o primeiro bebé?

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Carta aberta: Enfim, sócia

É oficial. Finalmente, tornei-me sócia da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), com o nº 26.832. Tive direito a carta escrita em nome do Presidente da Direcção, Manuel Freire, que assina estas palavras gentis:
"Quero felicitá-la e dar-lhe as boas vindas à casa dos Autores Portugueses, desejando-lhe os maiores êxitos pessoais e culturais (...) Mais do que nunca, a SPA precisa de todos ao autores e da sua criatividade.".
E pronto, pertenço à grande  e ilustre família de autores. É uma boa sensação, contribuir para criar algo de novo. Ser original é cada vez mais difícil: na escrita, na música, na pintura, na arte em geral. Mas é preciso tentar, com tudo o que temos dentro do peito.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Recomendo

Como eu costumo dizer, as coisas boas são para partilhar. por isso deixo-vos aqui o link para um blog maravilhoso da não menos maravilhosa jornalista Patrícia Fonseca.

http://blogkiosk.blogspot.com/

E porque o ano está quase  a terminar, espreitem as melhores capas de revistas do ano. Vale a pena.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Conforto

Eu sei, uma vergonha. Enquanto os outros trabalham, na cidade, arrastando os corpos pelos transportes públicos e no automóvel, no meio do trânsito, eu aqui estou, com as mantas, a lareira, os cães, os livros, a escrita. O meu marido montava a árvore de Natal e eu perguntei-lhe:
- Queres biscoitos ou bolo de laranja?
E ele respondeu-me, como de costume, com um sorriso cúmplice:
- Pode ser!
Foi comprar mais lenha, ovos e fermento "Royal", enquanto eu fiquei a amassar a massa e a pôr a mesa para o jantar. Chegou e acendeu a lareira. Eu fui descongelar o corpo ao lume, agradecida. Ao fim do jantar terminei o vinho tinto ali, decapitando um urso de chocolate de leite, quase enfiada dentro do lume vivo, que crepitava. Os cães deitados ao pé de nós, decorativos, perfeitos.
Depois do corpo consolado, fui completar a tarefa interrompida. À ceia, para discutirmos os últimos preparativos para o Natal, espera-nos um chá Earl Grey, acompanhado de biscoitos e bolo de laranja...à lareira, claro. Eu sei, uma vergonha. Envergonhem-se vocês também, que vale a pena. Porque parar é bom, nem que seja preciso reinventar o tempo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A consciência do frio

O serra da estrela olha-me com ar enfastiado, sem compreender porque me agarro tanto a ele. Sabe lá o cão o que é ter frio. Com o casacão (casa...cão?) que tricotou para o seu primeiro inverno, não há frio que lhe chegue à pele. Anda-me a arfar pela casa, como se estivessem dias amenos de primavera. Uma afronta para a dona, que se tapa com camadas e camadas de trapos, como uma cebola velha ou uma velha encebolada. O outro, mais magro e despido, compreende-me bem, e enrola-se, qual pescadinha de rabo na boca, feito gato, à espera que passe o suplício.
A consciência grita-me, Mexe-te, vai trabalhar, que aqueces num instante. E eu mando-a calar e atiro-lhe com um cobertor para cima, a abafar-lhe a voz. Ela aproveita para tapar-se e desiste, encostando-se à minha preguiça, à procura de algum calor que lhe devolva a voz paralisada.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Frio

Deixei-me vencer pelo frio, que me penetrou a pele, o músculo, os ossos, a alma. Fiquei como um bicho, enrolada sobre mim mesma, tentando acender um qualquer lume dentro de mim. À noite chegou o homem que domina o fogo e fez jus à sua fama, acendendo uma fogueira abençoada, na lareira da sala. O crepitar do lume foi derretendo, lentamente, as estalactites que se haviam alojado dentro de mim, até que o frio, vencido e humilhado, morreu aos meus pés, sem um adeus.

sábado, 12 de dezembro de 2009

A carta

Um dia disseste, no início da relação, que éramos como os amantes dos filmes, aquela coisa clássica do chegar e despir, lembras-te? Isto da carta sobre a mesa da sala também é. Poderia até ter começado por escrever um dos lugares-comuns habituais nestes casos dramáticos: “Esta é a carta mais difícil que tive de escrever até hoje...” e estaria a dizer a verdade.

Parabéns pelo dia de hoje, Patuska. E obrigada a ti e ao teu marido pelo jantar maravilhoso. É bom pertencer a um grupo de gente assim. E gostei de chegar a casa cheia de livros, como sempre, quando venho da tua. Votos de boas festas e de muitos sapatinhos no sapatinho! Nunca vi tamanha paixão por sapatos!
Imagem: Patrícia Reis fotografada por Marisa Cardoso. Retirada do blog "Devida Comédia"

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Natal, por amor

Comprei três quilos de abóbora aqui na santa terrinha e açúcar amarelo. Deixei os frascos vazios de molho em água quente, para retirar os rótulos e a cola e, por fim, esfreguei energicamente com acetona e algodão, até o vidro ficar translúcido e virgem. Lavei a abóbora, retirei-lhe as sementes e cortei-a, primeiro em pedaços, depois em cubinhos. O músculo do braço fixou a doer, mas não me importei. Os cães deitados no chão de tijoleira da cozinha, feitos sentinelas. Fiz as medições na balança, calculando a quantidade de abóbora, açúcar e raspa de casca de laranja, para dez frascos de compota. Pus dois tachos em lume brando. Demorou cerca de duas horas, mexendo de vez em quando, até “fazer estrada”, a indicar que estava no ponto. Nos intervalos, vinha ao computador: facebook, emails, blogs. A casa ficou perfumada com um cheiro doce. A colher de pau comprida sempre a mexer, para não pegar. Varinha mágica, para não deixar pedaços inteiros. Há pessoas que não gostam. A consistência certa, a canela, para aromatizar. Distribuí o doce pelos frascos, o mais democraticamente possível. Fui às gavetas do escritório, à caça de etiquetas coloridas. Identifiquei a minha compota com votos de festas felizes, aqui da terra. Do saco onde guardo os despojos de embrulhos de vários anos e de tantas festas, saquei papel de seda vermelho e ráfia verde. Da prateleira, subtraí fita-cola, agrafador, fita dourada, papel de embrulho. Colei uma etiqueta em cada frasco, depois de o doce arrefecer. Cortei quadrados de papel de seda, prendi-os com um elástico e rematei com ráfia verde, em dois tons. Por fim, embrulhei os nove frascos em papel de embrulho dourado e rematei com laços, que fiz com a fita no mesmo tom. Para o meu anjo da guarda, cujo aniversário se irá festejar à meia-noite, embrulhei as duas fotografias a preto & branco, assinadas pelo artista: duas portas da futura exposição “As Portas do Castelo” e um pijama de flanela de algodão, aos quadrados, em tons de vermelho, rosa e branco, para a casa do Meco, que tem uma buganvília à porta; porque a imaginei assim vestida, pela manhã, antes de ir buscar o pão quente.
Podia ter ido comprar o doce ao supermercado e a uma loja qualquer para despachar esta malta com presentes que já vêm embrulhados e tudo. Mas é nestas alturas que sinto o orgulho de dedicar tempo às pessoas. Festas felizes para todos.



terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Crónica de Lobo Antunes

As Crónicas do L. A. estão para a extensão da sua obra como o Sean Connery está para os galãs do cinema: existe um fenómeno inexplicável, que se traduz num concenso de gosto: quando se fala no Lobo Antunes, todos dizem que preferem as crónicas aos romances; quando alguém pergunta, Quem é o mais belo homem do cinema, as mulheres, numa acção combinada, respondem: Sean Connery, claro! ninguém se compara à voz  e ao charme do velho senhor...! Confesso a minha falta de originalidade, pois incluo-me neste grupo: vivam as crónicas do L.A.... e o senhor Connery, claro.

"Diziam-me isto, em criança, e eu adorava. Voltou-me hoje à ideia, passado tanto tempo. Tanto tempo, uma ova: era menino, limitei-me a piscar os olhos e fiquei como agora. Entende-se a maldade? Eu não entendo. Piscar os olhos é um instantinho, que raio de merda aconteceu? Mascararam-me com rugas, cabelos brancos, vontade de ir mais cedo para casa. Brincadeira de mau gosto, a idade. Oiço
- Você era lindo
e torno-me uma pedra por dentro. Miséria deste tempo verbal, era, que horror. E lindo, ainda por cima, eu que nunca me achei lindo, sempre me dei mal com a minha cara, o meu corpo. Notava o olhar das raparigas e achava esquisito. Até bilhetinhos me mandavam, até conversa comigo metiam. E eu corado, aflitíssimo. Uma ocasião, com catorze ou quinze anos, fui ao Bairro Alto, a uma casa de prostitutas. A bicha começava logo na escada. Lá fui subindo aquilo degrau a degrau, atrás, nunca me esquece, de um magala fardado. Uma criatura à entrada a cobrar o dinheiro, uma sala com espelhos, cadeiras mulheres sentadas, de roupão. Não consigo reconstituir bem o que se passou depois, a minha cabeça, chegada a este ponto, dá um salto e estou num quarto com uma cama, um cabide pendurado de um gancho na parede, um bidé e uma garrafa, para além de uma mulher, há pouco sentada, a despir o roupão e a mandar-me despir. Desci as calças, atrapalhando dedos nos botões, a mulher fixou-me mais ou menos ao centro do corpo, declarou
- Deus deve gostar de ti, miúdo
e no momento a seguir estava a puxar as calças para cima e a fugir escada abaixo desarrumando a bicha. Continuei virgem durante séculos, é uma forma de expressão mas serve e, além disso, razoavelmente exacta. Dança o cão, dança o gato, dança o feijão carrapato.
O que sucedeu à minha lindeza? Murchei devagarinho ou de repente? Sou feio, nesta altura? Um pavor se calhar, todo torto. Recordo-me do meu pai fazer trinta e três anos
(idosíssimo)
porque eu gaguejava e repetia trin trin trin para alegria dos crescidos. Recordo-me também de, nessa época, estar doente com a tuberculose, que a minha mãe apelidava, julgo que por vergonha, de gânglios:
- O António teve gânglios
consoante me recordo da falta de apetite, do frio, de estar deitado, de conversas incompreensíveis à minha roda. O meu avô dava-me miniaturas de bichos em vidro que eu atirava, com fúria, contra a janela. Não me recordo dos remédios, não me recordo do médico, recordo vagamente as minhas tias a tomarem conta de mim. Do sol na janela. De soldados a marcharem na Estrada de Benfica. Dança o cão, dança o gato, dança o feijão carrapato.
Doenças: uma meningite também cá canta, aos nove ou onze meses de idade. Contam os aedos da tribo que comecei com febre e entrei logo em coma. O que eu fiz para morrer, tantos esforços, logo ao princípio, merecem consideração, aplauso. Não recebi nem uma nem outro. Se calhar julgaram que não fiz de propósito, os tontos. Temos alguns suicídios na família, nós: o pai da minha avó, primos do meu avô, assuntos secretos, que me relataram já tarde e com vergonha. Há alturas, e digo isto em segredo, em que fico com os dedos negros, procurando uma corda. O António de língua de fora, desorbitado, a baloiçar. Depois a esperança volta, recomponho-me. Espio a mão: dedos cor de rosa, normais, já não tenho bichos a devorarem-se dentro de mim. Que era lindo. Agora sou um senhor. Num dos restaurantezecos onde como o dono trata-me por jovem:
- Boa tarde, jovem
- Então o que vai ser hoje, jovem?
- Meia-dose ou uma dose, jovem?
e eu aceito o jovem que, de tempos a tempos, se metamorfoseia em amigo
- Então o que vai ser hoje, amigo?
embora, ultimamente, penda para o jovem e me atire cotoveladas cúmplices.
Sinceramente o que foi hoje não me lembro. Espera, lembro: empadão de carne, meia-dose. E saí na mecha para fazer as compras da casa e escrever isto. A seguir começo o trabalho no livro de que tenho apenas o magma da primeira versão e não faço ideia, sequer, se é ou não um livro. Muitas dúvidas acerca disso e receio bem que acabe no lixo. Mais de metade do meu trabalho acabou no lixo. E, na manhã seguinte, lá estava eu no caixote a procurá-lo, tentando reconstituir dúzias e dúzias de páginas amarrotadas e rasgadas. Com o Fado Alexandrino, então, foi um sarilho, aquilo era grosso como o diabo. Dança o cão, dança o gato, dança o feijão carrapato. E tem sido um dia infernal, entrevista cedo, encontros de trabalho à tarde e eu, à socapa, a espreitar a mesa das palavras, ansioso por voltar a elas. Por que razão o tempo roubado à escrita me faz sentir culpado? É esquisito mas faz, não devia sentir-me culpado: acabo por estar nisto tantas horas, deixo a pele, deixo a alma nas frases, crucifico-me todo. Anoitece, acendo a luz, continuo. Tão cedo ainda para entenderem o que digo, perguntas estúpidas, interpretações parvas. Isto, sobretudo, nos jornais. Dos universitários só tenho a dizer bem, há um entendimento do texto muito mais profundo. Agora os artigozinhos de jornal, em regra, são uma miséria: opiniosos, superficiais, ignorantes, tão desonestos às vezes. E dão estrelinhas, os camelos, de mistura com uma ignorância de pasmar. Então o que vai ser hoje, jovem? Peço o jornal desportivo para ler enquanto como, um olho no prato o outro no futebol. Saudades de Garrincha: escrevia tão bem! Quando eu era miúdo e comprava os bonecos da bola o avançado centro do Elvas chamava-se Patalino. E um defesa do Olhanense Grazina. O guarda-redes do Sporting de Braga Cesário. O do Estoril Sebastião. Espero que estejam todos de boa e feliz saúde pela alegria que me deram. Você era lindo
e na época de Patalino, Grazina, Cesário e Sebastião, reconheço que era lindo de facto. Se eles voltarem a jogar prometo ser lindo outra vez."
(ANTÓNIO LOBO ANTÚNES, Crónica publicada na "VISÃO", Novembro 09)
Obrigada, isabel, salvaste-me o post de hoje :-)

domingo, 6 de dezembro de 2009

2 poemas do Fernando

Mais uma noite, amor

"Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?"

Apócrifo pessoano

"O eu sentir quando penso
e pensar enquanto sinto
origina um labirinto
onde me perco e convenço
de que tudo é indistinto,

de que o mundo se organiza
desorganizadamente
nos recônditos da mente
como uma ideia imprecisa
que quando se pensa, sente

e quando se sente, pensa,
numa confusão total,
num processo irracional
em que se esfuma a diferença
entre o que é ou não real.

Dos meandros disso tudo
nasce apenas um desejo:
distinguir o que não vejo
e é talvez o conteúdo
deste infinito bocejo

a caminho não sei de onde,
à espera não sei de quê.
Quem me ouve? Quem me vê?
A vida não me responde
e afinal ninguém me lê."
(FERNANDO PINTO DO AMARAL)

Foi um prazer e uma honra conhecer este senhor.
Obrigada, Fernando, por olhar para quem dá os primeiros passos.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Lulices

Palavras do Presidente Lula, no dia 13 de Novembro, em que o governo anunciou uma queda na desflorestação da Amazónia:

“Então, essa questão do clima é delicada por quê ? Porque o mundo é redondo. Se o mundo fosse quadrado ou retangular, e a gente soubesse que o nosso território está a 14 mil quilômetros de distância dos centros mais poluidores, ótimo, vai ficar só lá. Mas, como o mundo gira, e a gente também passa lá em baixo onde está mais poluído (???), a responsabilidade é de todos”.

Posto isto, divirtam-se e bom fim de semana. Mas cuidado, não vão "lá em baixo, onde está mais poluído"!! Obrigada, Alice Vieira, por esta pérola.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Desamizade

A jornalista d' "O Público" Isabel Coutinho escreveu um artigo, onde incluiu alguns relatos de pessoas que se viram forçadas a cortar laços com alguém na Internet. Um deles é o meu. O artigo saíu n "O Público" de hoje. O meu pequeno contributo pode ler-se abaixo do subtítulo "Problemas não-virtuais" e começa assim: "Um homem que eu conhecia vagamente..."
Público - Desamigar é a nova palavra
Aproveito para recomendar o blog desta jornalista:
http://www.ciberescritas.com/

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Em estúdio

Hoje estreei-me em estúdio, não como cantora, mas como compositora. Foi muito boa, a sensação de estar do lado de cá do vidro, junto de pessoas que me perguntam se eu acho bem isto ou aquilo. Senti-me importante. É comovente ver a nossa "filha" crescer, tomar forma, surgir com o corpo todo. Não podia ter ficado mais bem entregue. Obrigada, Rita, pela tua voz. Obrigada, Ernesto, pelo bom gosto no arranjo. Ah, perdoem-me o orgulho de mãe!

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Talvez um dia

Quando me apresentam como cantora e escritora, fico desconfortável e com cara de parva, ao mesmo tempo que sinto o impulso de os corrigir. É indiscutível que existe um lado de escritor em quem, desde sempre, usou a escrita para se expressar, arrumar o mundo, observá-lo. Escrevo desde que me lembro: poemas, diários, cartas, pequenas narrativas. Sou escritora de gaveta, como sou cozinheira, mãe, dona de casa, amiga, filha, mulher, cidadã ou jardineira: os gestos que praticamos todos os dias descrevem as várias fatias da pessoa que somos e a forma como usamos o nosso tempo. O meu perfil no blog tem a ver com isso, com as actividades que devoram mais os meus dias, só por isso é honesto.
Hoje encontrei a palavra mais certa: escrevinhadora - uma pessoa que escrevinha. E já tratei de corrigir o meu perfil. Talvez um dia possa alterar essa palavra. Completá-la. Até lá, continuo a ser uma pessoa que escreve, não ainda uma escritora.