Em casa de uma vizinha, defronte a uma pilha de livros velhos sem destino, escolhi alguns, como criança numa loja de doces. Exemplares de editoras há muito desaparecidas, a meia dúzia de tostões, muitos deles de folhas ainda fechadas, o que me fez estrear um abre-cartas de marfim que tinha sobre a secretária, e a que nem me ocorria dar uso.
"A Rua Principal", de Sinclair Lewis
"História de Uma Rapariga", de D.H. Lawrence
"História de Uma Rapariga", de D.H. Lawrence
"A Mão Esquerda de Deus", de William E. Barrett
"O Inverno do Nosso Descontentamento", de John Steinbeck
"Gog", de Giovanni Papini
"Balada do Café Triste", de Carson McCullers
"Cadernos de Poesia" de Vinicius de Moraes
"Contos de Mistério Escolhidos por Alfred Hitchcock"
"Onde a Noite se Acaba", de José Rodrigues Miguéis
"Histórias Maravilhosas", de Selma Lagerlof
Uma edição maravilhosa do "Conde de Monte Cristo", de Alexandre Dumas, repleta de ilustrações ao longo dos vários volumes...
..e muitos outros.
Ao ler "Os Filhos das Trevas", de Morris West, folheando as páginas amarelecidas por tantos invernos, torno a sentir o cheiro que me transporta à infância passada em Sesimbra: um aroma indefinido a humidade antiga e papel velho que tinham as minhas leituras de então: Condessa de Ségur, Mark Twain, Jack London, Jorge Amado...amados livros, que nos acompanham numa fidelidade canina, silenciosa, abrindo dentro de nós janelas para outros mundos, por vezes, até, percorrendo a nossa própria memória adormecida.
Olá Vera
ResponderEliminarAs vicissitudes de quem navega por estas paragens insulares e africanas, acabam por servir para que não nos esqueçamos de que as benesses da civilização, aqui só chegam em pequenas doses, parcimoniosamente postas à nossa disposição. Talvez seja por isso que os africanos sabem, melhor que ninguém, sorver a vida, ainda que esta se resuma a algumas gotas de humidade sobre uma cortiça seca.
Nos últimos dias a internet, algo implícito ao quotidiano europeu, tem-se mantido por estas paragens, olimpicamente fora de serviço impedindo de forma impudica que nós, meros mortais, pudéssemos usufruir dos seus serviços. E assim, fiquei impedido de comentar este seu post tão interessante.
E digo interessante porque me fez recordar dois episódios marcantes da minha vida.
Por volta dos meus doze anos de idade, em plena década de 60 do século passado, uma amiga duma tia do meu pai resolveu ir para Angola. Chamava-se Vicência Canhoto, não me esqueço, e morava perto do quartel dos bombeiros da Encarnação, na altura às portas de Lisboa.
Encaixotada a casa com todos os seus pertences, entendeu a Senhora não haver espaço para os livros que ‘ornamentavam’ uma estante da sua sala e, como tal, resolveu dar-lhes um qualquer destino diferente do seu.
Não sei como aconteceu mas o que é facto é que a Tia Maria resolveu levar-me a casa da dita senhora, para que escolhesse alguns dos livros para crianças pertença dum filho desta, já crescido. Ora, a ideia agradou-me desde logo, porque, se havia coisa que não faltava em minha casa, era a convivência com livros. O meu pai desde sempre tinha sido um leitor dedicado, possuindo uma biblioteca muito eclética, e eu havia crescido a ouvir falar de Eça, Garrett, Fialho, Sena, Pessoa, Almada Negreiros, Manuel da Fonseca, Namora, Tolstoi, Selma Lagerlof, Pasternak, Dickens, enfim uma plêiade incontornável de homens e mulheres que povoavam já o meu imaginário largamente alimentado pelas histórias e resumos que o meu pai das suas leituras me contava e fazia.
Quando lá cheguei e deparei com toda uma estante cheia de livros fiquei de boca aberta sem saber o que fazer ou escolher. Acabei por trazer tudo o que pude e assim, vieram comigo várias dezenas de livros do Emílio Salgari, biografias, romances baratos, e três romances históricos, os meus primeiros, ‘A Mocidade de D. João V’ do Rebelo da Silva, ‘A Torre de Londres’ e ‘O Castelo de Windsor’ de W. Harrison Ainsworth. E esses livros acabaram por constituir o fundo inicial da minha biblioteca pessoal.
Há poucos anos a situação repetiu-se. Por morte do meu avô com a venerável idade de cem anos, e porque sou o neto mais velho, tive o privilégio de poder escolher, que livros queria da sua biblioteca. Mergulhei no meio de Zola, Pitigrilli, Hall Cain, Truman Capote, Somerset Maugham, José Alencar, Camus, Joaquim Paço d’Arcos, Papini, dezenas de livros que encaixavam perfeitamente, como peças de puzle, na minha biblioteca. Mas tive de escolher, tive de abandonar muitos. Acredite que doeu.
Mas desta vez, para além do poder escolher um livro, o que mais me marcou foi o cheiro, o cheiro que cada livro exalava, cheiro a papel antigo, cheiro a tinta de impressão, cheiro a cola de encadernador, cheiro a livro! E isso é inebriante para quem gosta deles. E este cheiro era o cheiro dos livros da Vicência Canhoto, o cheiro da biblioteca do meu pai. Descobri depois, que era também o cheiro da minha biblioteca, e fiquei contente.
Mas Vera, desculpe-me, isto não foi um comentário foi sim um desenrolar de memórias, Foi bom. Obrigado por, com o seu post, me ter feito reviver tudo isto.
Daqui, da Latitude Zero, despeço-me,
Com amizade
Mário de Sousa