quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Luz

No quarto, o homem ainda dormia. Na sala, era impossível: os cães não a deixariam ler, irrequietos, sedentos de brincadeira e de atenções; se se deitasse ali, no sofá, e encostasse as portadas para que eles, de olhos implorantes em expectativa, não a fixassem do lado de fora, não teria luz suficiente para ler. Subiu ao quarto de hóspedes e tornou a ser menina. Só o texto importava. O corpo sentado e correcto não era suficiente. Então fez o que há muito não fazia, estendeu-se atravessada na cama, sobre o lençol fresco de linho branco. Encostado às almofadas, o livro quase na vertical. Uma almofada debaixo da barriga, para atenuar a curva das costas e não fazer doer. Já não tinha corpo de menina. Ele agora queixava-se com pouco, era caprichoso. Leu até que, intercalando as páginas, a consciência a foi lembrando do que tinha de fazer. Era tarde. Para quê? Para as coisas que tinha de fazer. Coisas marcadas pela consciência. A leitura insistia prosseguindo, feita de um agradável egoísmo. Devorava as linhas, uma por uma, agradecida ao autor que lhe reacendia a vontade de escrever. Também queria contar as suas histórias assim, com regras próprias, livre. Então era possível, escrever assim. Só parou quando foi obrigada pelo corpo. Os olhos secos, o antebraço dormente de ela estar há tanto tempo apoiada nos cotovelos, ofendido de suportar o peso do tronco, quando o corpo já se recusava a reposicionar-se mais uma vez. Quando o corpo desistiu.  Estava pronta a desistir das coisas que tinha para fazer. As coisas marcadas. Foi o corpo que a despertou daquele transe. Que a resgatou de uma alegoria passada num país incerto, onde o belo se misturava com a escuridão. Uma escuridão que a fascinava. Algures, enquanto lia, virou uma página e deu com o pequeno carimbo da biblioteca. E lembrou-se do blog de José Fanha, minhas queridas bibliotecas e pensou, tem razão, minhas queridas bibliotecas. A gratidão não chega.
Então ergueu-se da cama, estendeu a coluna vertebral, rodou os ombros e deixou o livro sobre os lençóis. Abriu a porta do escritório que ficava ao lado do quarto de hóspedes, e sentou-se a escrever. Escolheu algumas canções de Enya para lhe fazerem companhia enquanto picava o teclado com os dedos. Escreveu sem se preocupar com a correcção das frases, a simplicidade talvez excessiva das palavras, sem se ralar com as repetições. Repetir também valia. Escrever sem pensar muito, sem tornar cerebral o que queria dizer, sem domesticar o efeito mágico daquela leitura. Esfomeada de espanto, por causa daquela luz inesperada, pensou ainda, antes de pousar o livro sobre os lençóis, quando acabar este, vou lá buscar o morreste-me.

2 comentários:


  1. Ler, assim como quem ouve o que o autor escreveu como quem fala. Ler como quem encontra uma claridade nova na emoção das coisas, naquilo que, afinal, foi sempre tão simples. Pensar que parece tão fácil escrever assim...
    Levo tudo comigo. A dica da almofada debaixo da barriga, também. É bom sentirmo-nos meninas e aliviar as dores no corpo.
    O livro ( este livro) espera-me, com o marcador na página 30 e tal. Há livros que nos querem só para eles e abraçam-nos de forma inteira; corpo e alma.

    Beijinho, Vera

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  2. Querida João,
    que boas, as tuas palavras. Estamos juntas neste mundo maravilhoso dos livros que nos abraçou em amizade.

    beijinhos, Maria João! E BOAS LEITURAS, sim? :)

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