terça-feira, 28 de abril de 2015

Por favor

Existo? Confirmem, por favor.
Mostrem-me o reflexo dos meus sonhos, que me viram à mesa, a virar a mesa, comendo e bebendo, amando os meus filhos e netos, o cão, o gato, a flor, o céu que me passa nos olhos, que passo a passo me transporta para outros lugares.
Existo? Gostem, por favor.
Gostem do que escrevo, do que sinto, do que penso, do que minto, dos livros que leio, do quadro que pinto, do bolo, do prato, do vestido novo, do sapato, do que grito ou confesso de porta escancarada a cada estranho, enquanto estranho palavras que mal reconheço.
Existo? Comentem, por favor.
Digam-me o que pensam, e sentem e vivem e talvez eu tenha tempo de ler quanto me dizem, e gostar e responder até cansar e o assunto morrer.
Existo? Partilhem, por favor.
Espalhem o que amo e odeio, o que prendo entre os dedos, o alerta, a compaixão, o drama, a vitória, esquecimento ou memória dos outros que são meus e de outros que o não foram, que celebro como quem rouba a terra de alguém, enterrando os mortos, celebrando quem nunca pude abraçar, em lugares onde não estive.
Existo? Sigam-me, por favor.
Venham atrás de mim, por aqui, de mão dada, mão estendida a pedir, a cada dia, a cada hora, a cada amanhã por acontecer, a cada segundo por existir.
Estranha forma de solidão, estranha forma de agarrar o que andamos a viver.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A arte do livro

E porque hoje é o Dia Mundial do Livro, aqui vai uma viagem ao fundo do tempo, em homenagem à arte tradicional de fazer cada livro com amor.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Cabeça-de-vento

Crónica: Raquel Serejo Martins
Pintura: "Cabeça de vento" de Ana Cristina Dias 
Detalhe

«A primeira vez que lhe chamaram cabeça de vento estava na escola primária.
Talvez mesmo na primeira classe.
Os meninos de bata amarela.
Canários em linha, como molas de roupa sem roupa não numa corda mas dentro de uma gaiola.
Guarda uma memória amarela.
Os meninos sentados, plantados nas carteiras, um campo de girassóis de olhos encandeados por um sol negro de ardósia, duas dúzias de olhos cegos de espanto por perceber que os estranhos desenhos eram palavras e que as palavras eram feitas de letras, uma matrioska, parecia marosca.
P-a-t-o.
G-a-t-o.
Parecia estranho, era estranho, porque para ela, um gato, sete vidas, quatro patas, um rabo, muitos bigodes e dois olhos amarelos como os berlindes que guardava no bolso.
Olhava para o enorme quadro negro e gato nenhum, nem escondido, denunciado por um rabo de fora.
Ouvia a explicação na voz de locutor de rádio sem música do professor e perdia-se, fugia, para lá das enormes janelas, tão grandes que a deixavam ver a cidade inteira.
Mentira, sabe que é feio mentir, se a cidade uma laranja, uma tangerina porque a cidade pequena, via apenas meia tangerina, o que já é muito ver para uma janela.
E de olhos na janela, para lá do vidro, perdia-se à procura do gato, procurava ao sol à soleira das portas, à porta da peixaria, camuflado entre os cortinados de uma janela, entre dois vasos com sardinheiras, a atravessar a estrada dentro ou fora da passadeira, pelas árvores, pelos muros, pelos telhados.
Chamavam-lhe cabeça-de-vento e diziam que fazia muitas avarias.
Ou tinha muitas ideias e nem todas corriam bem.
Convém ser boa a correr.
Não era o seu caso. Corria, tropeçava, caía, como se uma sequência com lógica.
Os joelhos pele de crocodilo, crosta sobre a crosta da primeira ferida.
E a correr, entre a lebre a tartaruga, ela um peixe.
Dentro de água ninguém a apanha, ninguém lhe ganha.
Ia ao fundo como se fosse à lua.
Para mais na cidade um rio, nos seus Verões um rio.
Quando ia ao fundo deixava todos de olhos pendentes e respiração suspensa, como a sua debaixo de água, até ao seu regresso, hesitantes quanto a mergulhar também, no limite do susto, até que emergia ofegante, sorridente, e sempre com uma pedra na mão, prova oval e concreta da sua audácia.
Tinha no quarto um frasco de vidro onde em vez de bolachas ou biscoitos guardava pedras do fundo do rio. A avó sabia que tantas as pedras como as vezes que ficou com o coração nas mãos por saber como o rio é matreiro com os invasores.
Porém ela um peixe.
E apesar das pedras, a avó nunca a chamou cabeça-de-vento, talvez soubesse que ela um peixe, inconsciência, audácia, guelras e barbatanas.
De olhos tristes com um sorriso perdoava-lhe todas as asneiras.
Mesmo quando os berlindes lhe fugiram do bolso, como se tivessem pezinhos.
Fugiram, avó! – Um eufemismo.
Fugiram-me do bolso e sem querer fizeram cair o professor no corredor da escola.
Mau humor fracturado em dois sítios, fato de fazenda de três peças e braço esquerdo engessado ao peito, passou a ser conhecido entre os girassóis como o pau-de-giz.
Tem tempo para a tristeza a menina. – Ouvia-se a avó dizer como se de uma ordem se tratasse, ao tempo, à tristeza e a todos os que queriam corrigir a menina.
Pelo que em casa da avó um mundo diferente, o tempo sem sobressaltos e o seu cocuruto em sossego.
Um mundo pequeno. A avó não tinha muito. Uma casa. Um gato. Uma figueira e na figueira quando figos pássaros.
A avó não tinha muito mas tinha muitas histórias para contar.
Conta outra vez a da menina que tinha um tapete voador.
E a avó contava, a mesma história, sempre de forma diferente, como se não atinasse com a história, pelo que sempre uma surpresa, um espanto.
Era uma vez um tapete que de tanto voar, voou mais do que avião, tanto como foguetão, chegou à lua, fez da menina astronauta.
A avó nunca andou de avião.
A avó só conhece os aviões de os ver passar no céu lá longe, pequenos como pardais, lá longe, na lentidão dos caracóis deixando um rabo de fumo.
A avó nunca viu foguetões, nem mesmo na televisão, que serve para as notícias e não mais, sabe sem saber bem o que são, imagina-os como foguetes gigantes, velozes e barulhentos como os que lançam na festa de Nossa Senhora da Assunção, grandes como camionetas, capazes de levar gente dentro, capazes de aterrar na lua, pelo menos quando gorda e cheia, apesar de tudo somado lhe parecer fraca brincadeira, porque fraco passeio para piqueniques.
Porém a menina gosta de ir à lua.
Foi a primeira astronauta da turma.
Pelo que a avó, se o avô a dormir a sesta, ia ao bengaleiro buscar a boina e o chapéu de levar à missa ao Domingo, dois capacetes, enfiava a boina na cabeça da neta até às orelhas, que assim devidamente protegida, 10-8-7-4 começa de imediato a contagem decrescente, contava ao contrário sem ainda bem saber contar, estado de euforia uma única vez interrompido, não para abortar a missão lunar, nem impedir a humanidade de dar mais um salto, mas por se lembrar, em respeito pelo original, que lhes faltava uma bandeira, a avó sabia que era imprescindível levar uma bandeira.
Temos de fazer uma bandeira. – disse antes de descolar o foguetão.
Tenho uma velha almofada solteira, cortamos uma galho seco à figueira.
O que é uma bandeira? – Pergunta a menina ansiosa perante a nova palavra e a novidade.
Uma bandeira! Como te posso explicar, é como uma fotografia. Estás a ver a fotografia do avô que guardo na caixa de costura, tem o bigode do teu avô, os óculos do teu avô, o chapéu do teu avô, o sorriso do teu avô, os seus vinte anos, o bolo de chocolate de que tanto gostava, o dia em que me pediu em casamento, o dia em que nasceu a tua mãe, o dia em que tu nasceste, é um quadradinho de papel que tem dentro todas as histórias de um país e os sonhos também.
Então a minha bandeira tem de ter uma bicicleta! O pai disse que se eu me portasse bem me oferecia uma bicicleta no meu dia de anos.»
pintura em livro
(retirado integralmente do blogue Clube de Leitores)

sábado, 18 de abril de 2015

Abril na Lx Factory


Para fazer tempo (como se fosse possível), na loja em frente à entrada, namoro vestidos e túnicas que não posso comprar. Um chá earl grey ao fim da tarde, na Landeau, com a Rosarinho, amiga que há cerca de 25 anos tem uma fatia do meu coração. Não houve direito a bolo de chocolate. Uma espreitadela à escrita de Rui Miguel Fragas, que me disse muito, com o seu "O nome das árvores". Os pequenos livros da Poética empilhados sobre a mesa. O tablet, as fotografias da praxe, para pôr no facebook. Sou agora mais uma, sucumbi às selfies. Faz-me sentir que pertenço ao mundo dos vivos. Chegaram a Maria João e a Virgínia, editora da Poética e aniversariante. Mais selfies. A angústia de não ter preparado nada, como se fosse preciso. Ler Devagar. Chegam a Raquel e o Ricardo. Sou apresentada a José Pinho, o "pai" desta livraria de culto, a paixão pelos livros, por receber bem as pessoas nesta casa que se recusa a fechar as portas.
Sol posto, instala-se o frio. Sabe bem ir por dentro, até ao outro extremo, onde se encontra o restaurante malaio. Somos sete à mesa. Alguém nos apresenta o João Pestana, este, não o outro, que está bem longe de chegar. Ocupamos a mesa reservada para um grupo de teatro que só chegará depois do início da nossa tertúlia. Perfeito. Os seis pratos que partilhamos, acompanhados por vinho branco e tinto, são generosos em cores e sabores. Camarão, carne de porco e muitos vegetais e especiarias do Oriente. Chega o José Luís Outono. Falamos de viagens, de música, de comida, claro, ou não fôssemos portugueses. Partilhamos sobremesas, bebemos café, cantamos os parabéns à Virgínia em cante alentejano, com a melodia da "Internacional" e do "Grândola vila morena". Risos.
Subimos ao primeiro andar, onde alguns participantes já aguardam. A Virgínia faz as devidas apresentações, com a simpatia e o tom informal que lhe são próprios e, à pergunta da Raquel, feita em tom de brincadeira - onde estava no 25 de Abril? -, instala-se o mote: as idades variam, há diferentes gerações e distintas são as memórias. A tertúlia ganha um carácter de quase terapia de grupo: celebrando, exorcizando, em confissões, memórias, desabafos, alertas, o que foram aqueles dias de 1974, o que significou a revolução, o antes e o depois, a ditadura, a censura, o espanto, a liberdade, sempre a liberdade como pano de fundo deste encontro salpicado de versos de poetas presentes uns, ausentes outros. Leitura de versos e prosas em papel, em iphones e tablets, na coabitação promíscua em que as palavras se vão arrumando nos tempos modernos, versos que se resgatam em gadgets cujas baterias estão prestes a terminar. Mas sempre chegam, as palavras que falam de liberdade.
Obrigada, Virgínia, por este encontro. Gostei de poder abraçar, enfim, uma amiga até hoje virtual: a poetisa Graça Pires; de conhecer um pouco ao recheio dos livros da Poética e dos seus autores, tais como Eufrázio Filipe, Gisela Ramos Rosa, Lídia Borges, Maria Isabel Fidalgo, Manuel Veiga, Rui Miguel Fragas e, claro, Rosário Ferreira Alves, cuja escrita conheço desde os versos que ela já escrevia, quando andávamos juntas na faculdade.
Descemos à livraria. Por fim o espumante oferecido pelo José Pinho, uma saúde à Virgínia, uma espreitadela aos desenhos maravilhosos do João Pestana, no seu Moleskine, mais fotografias que saíram desfocadas e dois dedos de conversa com a Raquel, que há tanto eu queria conhecer melhor.
Alcântara, sexta-feira à noite: uma operação stop com direito a balão, sem consequências, felizmente. A celebração que nos corre nas veias não pode ser detida nem censurada. Continuamos com as nossas palavras e com a liberdade do movimento sobre rodas. Foi este o nosso Abril. Livre, apesar de tudo.
Raquel Serejo Martins lendo excertos do seu romance "Pretérito Perfeito"
Virgínia do Carmo, editora da Poética
 

quarta-feira, 15 de abril de 2015

À espera

Gasto grande parte do dia a olhar o horizonte, aguardando uma trovoada que nunca chega. Só o roncar dos trovões ao longe, como pesados móveis arrastando-se, na preguiça da tarde morrna, na luz-camaleão que entorna no vale todos os tons de verde que é capaz de encontrar.
Na distância, a trovoada arregaçou as saias do vestido e partiu, pé ante pé, sem ter dançado comigo. No salão de baile apenas as ervas inundadas de ouro,  a melodia do vento. Do cimo das árvores, explode o aplauso mudo de mil pássaros, que assistem, dos seus camarotes, à partida da tempestade. Talvez a escuridão a traga de volta, para uma valsa nocturna, encerrada em cortinas negras. Mas só em sonhos poderei dançar.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Tim Burton


Big Eyes, o novo filme de Tim Burton, desta vez baseado numa história verídica, num mundo bem real, e protagonizado por uma actriz que muito admiro, da nova geração: Amy Adams. Além do fantástico Christoph Waltz. A pintora ainda é viva e Amy Adams encontrou-se com ela, para aperfeiçoar o seu papel.






sexta-feira, 10 de abril de 2015

Um pouco mais

Porque estamos a precisar, porque nos deixa um pouco mais felizes, porque isto está verdadeiro, bem feito, com alma. Não liguem à imagem, que é de outro tema, acabadinho de ser lançado. O video é outro, bem mais sentimental e ensolarado. :-)
Bom fim de semana, sim? :-)

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Birdman

Muito bom filme. Recomendo. Excelente realização, argumento, casting. Tudo bom. Óscar de melhor filme? Merecidíssimo.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Da solidão

Da solidão, um ritual
da trovoada da tarde, a música da terra
suor de tambores, cordas vibrando,
harmonias de chuva,
bailados de sombras
no intervalo da luz.

Da solidão, o presente
paralisia do tempo, a face molhada
humidade leitosa, ruído, queixume,
parede escorrendo,
lamento do ramo
da haste, da flor.

Da solidão, a promessa
chegada à beira do nervo, da carne
da boca, da língua, da corda acordando
palavras morrendo
no abismo da folha
tão só, a procura
do poema
de estar só.

(© Vera de Vilhena, inédito)