Durante o dia, na cidade parisiense, as horas eram de calor. Trinta graus centígrados. O rio Sena enchia-se de insectos alados, lagartas metamorfoseando-se em festa, num presságio da alegria vestida a três cores - não da parte dos futuros derrotados, com as da bandeira francesa, mas vinda dos outros, muito outros, com o verde-esperança e o vermelho-cravo, cor da paixão, da liberdade, da Igualdade e da verdadeira fraternidade.
Uma borboleta desembaraçou-se do seu casulo, despediu-se dos amigos alados e disse que ia ao estádio ver o jogo.
- Eu também vou! Eu também vou! - disseram outras borboletas já a noite caía, depois de as ondas de calor fazerem estalar os casulos, na cidade que efervescia, na perpectiva da vitória, tão perto, já tão perto, a bater as asas, flap-flap-flap.
E eis que, poucos minutos após o início da batalha, o cristo na terra, herói de tantos, é apanhado à traição por dois soldados francos, que anularam todas as hipóteses de o bravo capitão continuar. Os portugueses ficaram de coração destroçado, mas não mais do que o próprio Cristiano, inconsolável, chorando, sentado no relvado, sem glória. Foi nesse momento, cheirando o sal que escorria pelo rosto bronzeado do bravo jogador, que a borboleta pousou - não, não era uma traça, era uma gorda borboleta nocturna, soube o narrador de fonte segura, por parte dos defensores da ciência e das bizarrias do mundo natural - e como todos sabem que as borboletas trazem milagres, foi para todos evidente: aquele pequeno ser vivo era o Éder, digo, o éter da vitória, Eusébio reencarnando:
- Não desesperes, meu amigo, está escrito que, aos 109 minutos da partida, os franceses terão de engolir cada palavra de escárnio (esta é da autoria da borboleta, que o Eusébio não conhecia palavras finas, só sabia jogar à bola) - pede uma meia elástica, faz mais uma tentativa, que fica sempre bem a um herói, mas depois vai para ali e concentra-te no teu papel de capitão, qual realizador dirigindo os seus actores. Já não precisas de provar seja a quem for o que vales.
E o capitão foi.
E aos 109 o milagre aconteceu: não o golo, que esse foi justo e merecido e estava escrito nas estrelas, mas o de um herói improvável, a mostrar ao mundo que as vitórias são colónias de organismos vivos, unidos, múltiplos, imprevisíveis.
Consta que, após a sua morte, a borboleta será canonizada e sepultada no Panteão Nacional.
Naquela manhã estranhamente fria para a estação, Luísa foi conhecer, enfim, a casa abandonada onde nascera e vivera a sua trisavó Anna. Dizia-se que o fim da sua vida naquela casa fora infeliz, encerrada, ano após ano, vítima do ciúme do segundo marido, um homem que a tratara com todo o carinho até ao dia do casamento, para logo revelar a sua natureza brutal. Anna era vista tocando harpa junto à janela, os longos cabelos soltos, camisa de noite com pequenos folhos e laços, os olhos reflectindo uma tristeza que não parecia deste mundo. A filha que teve do primeiro marido morto, que tanto a amara, fora levada à sua revelia para uma casa de família, adoptada como se não possuísse outro passado: aos olhos do padrasto, era sujo, o sangue correndo nas veias da inocente, fruto de um amor odioso, que ele não pretendia ver recordado, a cada dia.
Quando saíam ambos, para os salões, em vão os poucos amigos tentavam fazê-la regressar, reaquecer-lhe o sangue, provocar em Anna um sorriso, mas a jovem mulher jamais se recompôs do erro daquela união com o Diabo.
Luísa tranca a porta do automóvel, embora esteja absolutamente só, como se temesse a invasão de alguns espíritos que sobrevoam o lugar amaldiçoado. Nas mãos traz a grande chave que trancava a sua trisavó no jardim de inverno, no cimo do rochedo onde fora plantado o palácio: corria pela aldeia que o desaparecimento súbito do marido ciumento não se devera a abandono. Nunca mais fora visto nem o seu corpo encontrado. Mas também ninguém se importara. Anna morrera num hospício, na cidade mais próxima, junto do oceano de ondas sempre em fúria. No último momento de vida, desencarnara gritando:
- Quero voltar! Quero voltar!
Mas ninguém sabia para onde queria ela voltar, para o seu palácio não poderia ser, onde a infelicidade era um corpete colado ao corpo, a asfixiá-la, e até porque há muito Anna nada dizia que fizesse sentido e ali se foi, na cama suja de um hospício, o crucifixo junto à cabeceira, o padre saindo com ar transtornado, como se tivesse sido o receptáculo da mais terrível das confissões.
Não se vende, o palácio, por mais que baixem o preço. Talvez sejam os uivos e gemidos de Anna a desencorajar os compradores, dizem, escarnecendo, os que negam a teimosia dos fantasmas.
A mulher sente uma estranha paz, ao abrir a porta do jardim de inverno, cujas paredes de vidro despedaçado deixam ver as copas das árvores e o mar furioso, a perder de vista. Ao canto, a velha harpa, que ali ficou em silêncio. Voam pássaros, a resgatar memórias da mulher prisioneira.
Luísa aproxima-se do vidro circular, pintado com pavões de cores suaves e sente. Sente e é capaz de ver: alguém ali respira e não é ela, que traz a respiração em suspenso. O vidro a ficar embaciado provoca-lhe um arrepio. Enfim, Luísa reconhece a imagem dos velhos retratos a tomar forma: é o rosto de Anna reflectido na vidraça, a sorrir-lhe, feliz, como quem reconhece, no rosto de Luísa, a própria filha. De repente tudo se aquieta, os ramos das árvores, o voo e o canto dos pássaros, do riacho ali perto, coberto de pedras e musgos; tudo é silenciado, a fim de receber o eco esquecido regressando, em surdina, até formar uma sequência inconfundível de sons, tantas vezes escutados pelas árvores centenárias…
É então que a harpa recomeça a tocar uma peça, há muito interrompida, de Gabriel Fauré: Une Chatelaine en sa Tour.
Anna bem gritara que queria voltar.
- Mano, vieram dizer-me que não existimos.
- Como assim, não existimos?
- Que foi este lápis que nos pintou e que somos um animal mitológico.
- O que é isso, mitológico?
- É quando parece que é verdade, mas afinal é invenção.
- Ah, como as histórias.
- Eh...não, as histórias existem mesmo, estão escritas, as pessoas lêem-nas, falam e escrevem sobre elas.
- Então, mais me ajudas, também estamos aqui ou não estamos? Não estás a falar? Não te estou a ouvir? Não estão pessoas a ler sobre nós, a ver-nos, a desenhar-nos, com este 12/0 Silver Ultra Mini Angula não-sei-quê?
Sim, lá isso...
- Então é porque existimos tanto como as histórias.
- Pois é. Então não somos aquela palavra, mitológicos?
- Isso não sei, só sei é que me está a dar a fome. Vamos comer?
- Vamos! Ainda bem que desenharam ervas e flores.