sexta-feira, 29 de abril de 2011

Os sentidos na infância

SABORES/TACTO
Os chocolates REGINA, as pastilhas "Pirata" e as pirâmides de chocolate que comprava no Sr. Narciso, o café mesmo colado à nossa porta...





SONS/IMAGENS
Alguns dos discos em vinil que eu mais ouvi, entre os 8 e os 12 anos



IMAGENS/SONS
Algumas das séries que mais me apaixonavam e que eu via à hora do lanche, com uma grande caneca de leite com Nesquick e uma pilha de bolachas "Maria" com doce...



IMAGENS/TACTO
O puzzle de 500 peças que fiz tantas vezes, e cuja imagem conheço de cor, sem saber que se tratava da Divina Comédia de Dante, segundo um quadro de Domenico de Michelino, do séc.XV


IMAGINAÇÃO: OS 5 SENTIDOS EM ACÇÃO
Alguns dos livros que li vezes sem conta...as colecções inteiras, claro!





E aqui imagens vivas, para melhor matar saudades de um tempo de inocência que não volta e que guardamos como um bem precioso.




(ACRESCENTADO QUASE 2 SEMANAS MAIS TARDE, EM HOMENAGEM AO MÁRIO DE SOUSA, QUE AQUI DEIXOU, EM TRÊS COMENTÁRIOS, UMA HISTÓRIA QUE ME COMOVEU.)

6 comentários:

  1. revejo-me na maior parte dessas recordações. e até, claro está, nas pastilhas pirata! no outro dia no Chiado encontrei-as à venda naquela loja onde só vendem coisas que não encontras mais (não me lembro do nome) e comprei essas pastilhas para matar saudades ...

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  2. Como eu te compreendo! Os cheiros e os sabores são das coisas que deixam maior marca e a nostalgia que existe dentro de nós não lhes resiste :)

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  3. Olá Vera
    Pois é, fico muito contente por ver que não sou só eu quem de vez enquanto sente a necessidade de retornar no tempo e ganhar energias, mergulhando nas lembranças daquilo que nos é mais querido, ou grato. A Vera já tinha dado o sinal de que essa regressão estava próxima; escreveu ‘Maria’ (a bolacha) e depois ‘Infâncias’. Que bom que essa vontade lhe tenha permitido escrever estes dois pequenos ‘doces’. E agora, partilha connosco a saudade destas imagens d’Os sentidos na infância. Foi a cereja no cimo do bolo.

    Tudo isto me fez lembrar a minha lata de café da Kenco. Com a ajuda das notas do meu diário da altura, vou-lhe contar o porquê da Kenco ser importante para mim.

    Nos idos de 80 do século passado, vivi em Londres durante vários anos. Após ter terminado a minha pós graduação aluguei um T0 numa pequena praça no centro chamada Russel Square. Era tipicamente londrina. Quase quadrada, bordejada por prédios de três andares feitos do tradicional brick. Num dos topos um hotel, o centro todo ocupado por um jardim de verdes escuros bem servido de bancos de ripas de madeira, todos eles abrigados em copas de cedros; uma cerca de ferro pintado rodeava-o, dando-lhe um aspecto acolhedor e amigo.
    No fim do meu dia de trabalho na British Telecom, a caminho de casa invariavelmente atravessava esse jardim em diagonal e para me sentir não um londoner, mas pelo menos não tão out sider, distribuía prodigamente good afternoons a todos quantos comigo se cruzavam. Um dia, resolvi sentar-me num banco vazio e gozar aquela paz. Do outro lado do caminho os esquilos dançavam no seu afã de busca de comida, saltando e atropelando-se mutuamente enquanto os melros depenicavam grãos que só eles viam. No banco à minha frente, um casal idoso bebia de forma contemplativa o seu café por chávenas altas com uma grande asa. Cumprimentei-os com um leve aceno de cabeça e em resposta recebi a oferta de um sorriso. Acedi ao inicio de uma conversa de circunstância; o que fazíamos ou não, quem éramos, porque estávamos ali. Eram Mrs. e Mr. Zoltowski; ela Shara ele Andrew; ela inglesa de Fulham, ele filho de emigrantes polacos mas nascido em Victoria, Londres. Por aqui ficámos. No dia seguinte quando os encontrei à tardinha, Andrew exibiu uma terceira caneca oferecendo-me café; não recusei e absorvi-o em pequenos goles desfrutando aquele cheiro tão agradável. Tinha sido o meu primeiro Kenco.
    Falámos, do fog matinal, do spleen que ele tinha causado, do sol abrasador do dia com os seus 63º F (17º C), da tarde que ia terminando a exibir fagulhas de mil matizes que atravessavam os espessos verdes do jardim. Pouco depois, Shara e Andrew recolheram a casa; aproximava-se a hora da Coronation Street, uma soap opera que desde 60, diariamente visitava os lares britânicos. Um prodígio de longevidade.
    Os dias passaram e dos encontros acompanhados de um Kenco ao fim da tarde, foi nascendo uma sólida amizade, desinteressada e muito companheira. Fiquei a saber que os pais de Andrew tinham chegado a Inglaterra no inicio do Século XX vindos de Poznan, no noroeste da Polónia. O pai, carpinteiro, ganhava a vida em Londres como tanoeiro. Andrew, o mais velho de dois irmãos, veio ao mundo poucos dias depois de rebentar a I Grande Guerra. Shara tinha nascido em Fulham. O pai, escrivão num cartório, era um homem culto e que soube transmitir aos filhos o valor da instrução. Por volta de 1936 mudam-se para Victoria onde Shara conhece Andrew. Apaixonam-se e casam 3 anos depois. Ela com 20 e ele com 25.
    .../...

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  4. Em 1939 rebenta a 2ª Guerra Mundial. Andrew alista-se nos Royal Welch Fuziliers Corps e segue para o norte de África onde toma parte na reconquista da cidade egípcia de Sollom. O seu regimento segue depois para o Cairo e por lá estabelece quartel. Nos 3 anos que se seguem, apaixona-se pela cidade, meio árabe, meio católica, meio copta. No fundo, o Cairo oferecia-lhe um cosmopolitismo semelhante ao londrino e isso cativava-o Chega mesmo a considerar ficar lá a viver chamando Shara para ao pé si, mas por essa altura, Shara havia aderido ao Women’s Land Army e de sol a sol dava o seu contributo para levantar a produção agrícola do país e assim reduzir os terríveis problemas da escassez de alimentos. A guerra avança, e em Janeiro de 1943, Andrew integra uma força de combate que é destacada para os arredores de Tunis e por lá fica até Maio, quando se dá a rendição do Afrika Corps.
    Mais uma vez de regresso ao Cairo, a paixão pela terra reacende-se e Shara vai então para o Egipto ao seu encontro. Vivem dias estonteantes de felicidade e amor. A guerra chega ao fim e Andrew é desmobilizado em Julho de 1945. No Egipto do pós-guerra há poucos lugares para estrangeiros, mesmo se fossem ingleses. Andrew era descendente de polacos e o Egipto tinha declarado guerra à Polónia. Zoltowski era um apelido proibido por essas alturas no Cairo e as poucas oportunidades que existiam, nunca seriam entregues a um inglês de origem polaca. Desiludidos, em finais de 46 regressam a Londres e vão viver para Russel Square onde os encontrei 34 anos depois.
    Tanto tempo passado e as lembranças do Cairo ainda incendiavam os olhos de Andrew, tornando-os brilhantes de saudade e excitação. Um grande amor não morre e aquela terra tinha-lhe conquistado definitivamente o coração. Foi com ele que aprendi nomes de escritores como Naguib Mahfuz e Mohamed Haykal e também que os coptas são tão importantes como os árabes ou os católicos. E que são muitos!
    Com o tempo a passar, a saúde de Andrew foi-se degradando e por fim, já não vinha à tardinha ao jardim. Ficava-se por casa, sentado no seu sofá com as pernas bem agasalhadas na sua manta aos quadrados. Depois do jantar eu ia até lá e conversávamos, caneca de Kenco na mão, e pela boca dele eu viajava pelos desertos do Egipto e da Tunísia, sentia o calor esbraseante dos dias e o frio agudo das noites, os mugidos dos camelos e o cheiro do combustível queimado dos tanques MK III. E sentia o Andrew lá longe voando, mão dada com a sua Shara. Pelas 10 Shara lembrava-nos a conveniência de deixarmos o resto da história para o dia seguinte.
    Uma noite, à porta apareceu-me uma Shara chorosa; o coração do seu Andrew tinha cedido e estava desde a hora do almoço no St. Mary’s Hospital a lutar pela vida. Serviu-me o Kenco e, na sua voz pausada mas enérgica, contou-me como tudo acontecera. Passaram-se quatro dias e, de mão na mão da sua Shara, Andrew despediu-se deste mundo. Acompanhei-o na sua última jornada até ao Talhão Militar dos Veteranos da 2ª. Guerra no Brookwood Cemetery no Surrey. Teve honras militares e Shara sem uma lágrima, recebeu a bandeira inglesa que cobria a urna de Andrew.

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  5. Com o tempo, tudo voltou ao normal, apenas agora éramos só dois que bebíamos o Kenco ao fim da tarde; eu e a Shara. Já não falávamos do deserto mas sim das noites loucas do Cairo Copta no pós-guerra, com Shara a descrever-me as cores, os sons, as luzes e os cheiros do ar quente daquela cidade fantástica. Falávamos do fog, do spleen e, de algo que lhe dava um prazer enorme, das malas de mão de Margaret Tacher.
    Mas tudo tem um fim, e chegou a altura do meu regresso a Portugal. Sentia um aperto grande por ter de deixar Shara. No dia da despedida, muito direita mas algo chorosa, ofereceu-me um saco de papel com um grande laçarote em fita. Nessa tarde, bebemos o nosso Kenco e despedimo-nos, sabendo que provavelmente seria a última vez nos víamos. Quando cheguei a casa, abri o saco e lá de dentro saiu uma lata em forma de casa e no telhado, gravado em relevo dizia: The Kenco Coffee Company of London. Chorei pela vida…

    No início de Abril de 1999 voltei a Inglaterra para mostrar Londres à Carolina. Fui um cicerone competente mas nunca fui capaz de me aproximar de Russel Square e enfrentar a realidade de mais uma perda. Passeamos em Hyde Park, fomos às compras em Oxford Street. Jantámos em Convent Garden ao som de uma banda fabulosa; comprei flores no mercado de Chelsea e acabámos a noite a ver o Cats; beijei a minha mulher em Westminster e atravessámos a pé Tower Bridge; tomámos chá em Old Bond Street, comemos scones em Greenwich e regressámos pelo Tamisa, de barco. Enfim, de museus nem o Victoria and Albert escapou. No dia do nosso regresso, fomos a Padington para comermos kidney pie no King George Arms. A caminho de lá, em Spring Street passei numa loja com o nome ‘The Good Old Days’. Fiquei gelado; na montra em destaque, uma lata em formato de casa e no telhado escrito ‘The Kenco Coffee Company of London’. Senti os olhos embaciarem-se; olhei para dentro da loja e no lusco-fusco da tarde, pareceu-me ver através do vidro diáfano da montra, a figura de Shara, sentada atrás do balcão acenando-me um adeus.

    Obrigado Vera pela oportunidade.

    Salgados, 10 de Maio de 2011
    Mário de Sousa

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  6. Mário, caro amigo!
    Depois de ler a sua história, não pude deixar de arrumar uma lata do seu Kenco neste post. Perdoe-me se a embalagem não é exactamente como a recorda, mas as opções eram muitas e tive de me deitar a adivinhar qual delas seria.
    E se me agradece a oportunidade, eu tenho a agradecer, mais uma vez, o talento e o amor que tem partilhado comigo e com os leitores deste blog. Está a transformar-me numa espécie de editora virtual! Qualquer dia fazemos um livro de crónicas. :)

    Um grande bem-haja para si, com um grande abraço.

    Vera

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