sábado, 15 de agosto de 2009

Crónica de Alice Vieira

Como discordo deste excesso de informação e de alarmismo em que vivemos hoje, não resisto a publicar aqui a crónica da minha amiga Alice Vieira, que saíu hoje no Jornal de Notícias:

"A minha quase gripe
00h00m
Com esta paranóia da gripe, qualquer ponta de febre que se tenha nos parece de imediato os 40 graus que é suposto a gente ter quando ela ataca. Até eu - que me gabo de não me deixar influenciar- vi-me um dia destes, às quatro da madrugada (mas sem passarinhos a cantar) a ligar para a Linha-24, convencida de que ia engrossar as estatísticas. Porque, com as rádios e as televisões a divulgarem constantemente os casos que vão aparecendo - e é mais um nos Açores, e mais três no Algarve, e a creche que fechou e a que vai fechar - a gente de repente tem a certeza de que a gripe já entrou na nossa casa, ó para ela a subir as escadas do nosso prédio, e agora é a vizinha do 1.º, depois a do 2.º, e de nada vale a gente tentar ser racional e pensar que não é possível porque está tudo de férias e não há ninguém no nosso prédio.
Então lá estava eu ao telefone a debitar os meus sintomas, e a enfermeira (cujo nome não recordo, com muita pena, porque aquela conversa foi das poucas coisas boas que me aconteceram nestes últimos tempos) a acalmar-me, sobretudo porque a todas as perguntas que me ia fazendo, eu ia respondendo que não: não, não tenho dores de garganta, não, não tenho o nariz a pingar - e, sobretudo, não, não tenho febre.Foi então que a enfermeira, com paciência evangélica, me disse uma frase que há-de ficar para todo o sempre na galeria das frases que mais marcaram a minha vida: "nem todas as gripes são gripe A; nem todas as viroses são gripe" E ,se calhar porque já não sabia que mais dizer, perguntou : "Por acaso esteve ontem com muita gente?" Tive de confessar que tinha estado rodeada de meia Lisboa, aos abraços e beijos a meia Lisboa, a chorar nos braços de meia Lisboa, e que um enterro de um amigo não é lugar ideal para se fugir de contágios.
De qualquer maneira a enfermeira garantia que, se fosse mesmo gripe A, a febre já estaria a trepar pelo termómetro e não se ficaria pelos míseros 36.5, que era o máximo que eu conseguia atingir. Mas ela era rigorosa (ó que bom, haver neste país alguma coisa que funciona bem, mesmo às quatro da madrugada!), e perguntou: "Tem feito muitos esforços ultimamente?"
Explico-lhe o que tem sido o meu ritmo de vida nos últimos meses e ela acaba por descobrir o que realmente determina aquele terrível cansaço, aquelas terríveis dores no corpo todo: "o que a senhora está é cansada!" E de repente a voz do meu querido amigo Raul salta para o meio da nossa conversa, naquela sua magnífica "Ida ao Médico" ("Tussa! O que o senhor tem é tosse!"), e os ben-u-rons ficam à espera de serem necessários, e a paranóia acalma, e a madrugada enche-se de gargalhadas e, pelo menos por enquanto, a gripe ainda não entrou no meu prédio. Acho que tem medo de gargalhadas."

(ALICE VIEIRA, IN "Jornal de Notícias")

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