Perdi o Norte. Eu sei, eu sei, como é que uma bússola vai perder o Norte, olha o disparate. Mas a verdade é que perdi, não me perguntem como. Está bem, eu conto.
A sério que comecei por ser feliz. A minha vida corria dentro da normalidade, algo rotineira, é certo, mas ia cumprindo o meu dever com um grau respeitável de satisfação. Uma bússola não tem sonhos, por isso estava bem assim. Pousavam-me na mão quando se desorientavam, à espera que eu fizesse o que melhor faço – mostrar onde é o Norte. Até aqui, tudo bem. Só que de há uns meses para cá, os outros pontos cardeais manifestaram a sua inquietação e, quando eu menos esperava, decidiram reorganizar-se. De início, pensei que fosse uma crise existencial passageira, uma pequena fuga ao ramerrão diário. Uma ambição inédita, sim, mas quem era eu para falar, se era eu quem mandava? Falar é fácil, pois. Por isso fiquei calada. Mas o tempo passou e tive de admitir que o caso era mais grave, quando o Sul me usurpou o lugar. Assim que tal aconteceu, os outros, Este e Oeste, deliraram com a promessa de divertimento, e incitaram o meu pólo oposto à total desordem cardeal, argumentando que eu já tivera a minha época áurea e exigindo a igualdade de direitos.
No dia seguinte, sentindo-se despeitado, talvez, o Norte havia desaparecido. Reuni-me com a agulha, com urgência, e ao fim de várias horas de controvérsia entre os restantes três pontos cardeais, alteraram-se estatutos e o Sul ocupou a posição do ausente, assumindo a sua forma.
Mas nem sempre se muda para melhor, não é?
Como o meu dono é distraído como um relógio sem ponteiros, ainda hoje anda perdido, a fiar-se em mim, desnorteado e confiante, coitado. Um dia destes, quando arranjar coragem, conto-lhe.