quarta-feira, 30 de março de 2011

Infâncias

No cafezinho ao lado do dentista, dei com uma montra que me levou de regresso à infância. Frascos com rebuçados a vulso (Dr. Bayard, limão, coco), pastilhas Gorila, caixas de Smarties e Maltesers, Toffee Crispy, Sugus de laranja e de morango.
- Boa tarde. Um néctar de pêssego, por favor.
- Boa tarde, menina. Não quer experimentar o novo néctar de cereja?
Que sim, que adorava tudo o que fosse de cereja e que aceitava a sugestão. Para meu azar, como estava anestesiada até à alma (sou uma doente difícil, insensível aos truques para adormecer a dor, pelo que, para a anestesia fazer efeito, tive de levar dose de cavalo), quase não lhe senti o gosto, apenas um travo que me lembrou vagamente o sabor das cerejas.
O ambiente não podia ser mais familiar. Uma criança no carrinho com uma roca na mão a fazer tchi-tchic-tchic, mães e irmãos que vêm buscar os miúdos à escola, mesmo ao lado. Todos se conhecem. Eu, com o meu caderno e a minha caneta (que me borra os dedos de tinta preta, por sinal), sou uma intrusa. Olham-me curiosos, sem hostilidade. Chegou o sol e trouxe uma pequena felicidade. Escuto as conversas, como cantava o Rui Reininho. A quantidade de diminutivos que utilizam é directamente proporcional ao nível de bem-estar. Pessoas entram e saem:
- Quer um cafezinho, doutor?
- Um quequezinho, faxavor, Sr. José.
- Vai um suminho de laranja, não é verdade, D. Mariana?
- Deseja uma caixinha, para levar?
- Arranja-me mais uma cadeirinha?
- Deseja que aqueça um bocadinho. doutora?
Termino o meu sumo, olho para os dedos pintados de preto e deito a caneta fora. O marido chega e despeço-me do senhor que me atira um:
- Adeusinho, menina!

segunda-feira, 28 de março de 2011

Lídia Jorge

"Um tempo velho. E a sua própria casa, a casa da sua mãe e da sua velha avó, que conheceu ainda entre as paredes e um cajadinho de vários nós. Igual àquela ali defronte. Todas as outras paredes. Da grossura de braçadas de gente, portas implantadas em umbrais de castelo, mas cheias de nada. De terra, peso, pedra miúda, argamassa de areia velha e cal viva, amortecida de anos, minada de bicheza rastejante, voante, pequenos quadrúpedes roedores, ratos, bichos que nunca aparecem, mas existem e têm dentes afiados, porque na noite há aqueles tris tris que não se suspendem nem batendo forte com o sapato. É a costureirinha, ainda a penar. Agora ouves. É a tesoura sobre a máquina. É o seu pedal. São bichos. Minha mãe. Como estes, os que comem a madeira, os carpinteiros que não se vêem, não têm barriga nem patas, apenas abocanham e rilham, rilham. E têm orifício de cu. A prova disso é esta poeira, aos montões de manhã; quando se bate a cama. Assim os outros, os que devoram as paredes, comem a cal que em tempos foi viva, e a terra. A chuva depois do telhado ido pelo vento. A chuva entra e abre as fendas, separa as pedras, a caminho do chão. Abaladas a gente, mãe, a nossa casa cairá assim. Não te mortifiques antes de tempo. Uma mortificação de cada vez. Agora porque ele vai ir. Depois porque tarda a vir. E o teu desejo é casar. Depois a boda e o dinheiro para ela. Só depois te mortificarás por pensar que estás longe desta casa. Na ordem das coisas essa será a quinta mortificação. Não mistures os sofrimentos. Dizia o prior, teu pai. Mortificando-se por me ter e por não me ter. E agora a mim me mortifica a ceia. Duas bogas de sal, quatro batatinhas. Guarda a limpeza que é quase noite. Carminha. Vires pôr-te aqui, olhando as nuvens vermelhas, quando afinal. Chegou quem é exactamente a tua medida."
(LÍDIA JORGE, in "O Dia dos Prodígios", primeiro romance publicado da autora, em 1980)

domingo, 27 de março de 2011

Domingo

A estação comeu uma hora ao inverno e deu-nos mais tempo feito de luz primaveril. Um pequeno-almoço tardio e domingueiro, ao som do noticiário que torna mais amarga a refeição. Por mim era o silêncio. Só nós e as nossas palavras. Só o som de mais uma manhã. Mas é preciso saber, sair da concha, para ter como pensar. O que pensar. Um cientista luso-americano descobriu o elixir da juventude e agora, teremos de viver para sempre?
O céu escurece, as nuvens incham e ameaçam cair. Apanho a roupa do estendal e agarro-me ao Dia dos Prodígios, uma edição com alguns erros de paginação que, por isso, me custou apenas um euro. Começo a ler o primeiro romance de Lídia Jorge e sinto-me mal pelo pouco dinheiro que dei por ele. Pergunto-me como cheguei aqui sem conhecer os passos inaugurais da sua escrita.
Lá em baixo, o meu filho toca saxofone com o Mestre que, finalmente, acedeu a intervir como professor ocasional. Complementar a técnica clássica com a abordagem do jazz. A Big Band Junior dá os seus frutos, acendendo a paixão ao aprendiz, que agora estuda o seu instrumento sem dar pelo passar das horas. Escuto a tentativa de um solo num tema do álbum de Mafalda Sachetti, e percebo que os dois, Mestre e aprendiz, vão no bom caminho.

sábado, 26 de março de 2011

Tarde

Estou de tia. Passeio verde-abaixo-verde-acima, a espezinhar a  paisagem para abrir o apetite.  Cachorros para o almoço com batata palha, ice tea de pêssego e salada com sementes de abóbora e girassol. De barriga cheia, o filho e os dois sobrinhos agarraram-se ao computador, claro. Mas juntos. Há gargalhadas. Os cães deitados ao lado deles. A chuva, que teve a cortesia de esperar pelo fim da nossa caminhada, cai agora, despenteada pelo vento. Vamos fazer biscoitos e chá earl grey para o lanche. A casa irá ganhar o cheiro morno e doce de bolinhos acabados de fazer e engordar ainda mais esta mania de ser caseira. Hoje mais. Muito mais.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Cuca Roseta

Uma jovem e grande cantora, ainda por cima linda de morrer. Apropriado para o nosso fado, que também tem uma primavera e um renascer. (a rima foi involuntária, desculpem)

segunda-feira, 21 de março de 2011

Maria

Maria ajeitou as almofadas da cama e sentou-se a beber o chá de camomila e a comer as bolachas. Gostava de prolongar aquele momento, depois de a auxiliar trazer a pequena ceia que acompanhava a toma dos medicamentos, antes de dormir. Pegou no pacotinho de bolachas, abriu e tirou a primeira. Como rato, roeu, com método e moderação, meio centímetro a toda a volta, até atingir o desenho geométrico que tinha por hábito reproduzir a esferográfica, no seu caderno de capa roxa. O rebordo da bolacha apresentava-se agora rugoso e irregular. Maria usou a língua para limpar os vestígios de massa farinhenta, colados ao céu-da-boca, entre os dentes, nas gengivas. Ao mesmo tempo, observava o vapor saindo da chávena, a arrefecer sobre o tabuleiro. Quando considerou terminada a missão de limpeza, tornou a enfiar a bolacha na boca. Desta vez repetiu a operação com muita cautela, até chegar aos oito minúsculos orifícios arrumados em duas semicircunferências. Os incisivos não avançaram mais do que o necessário, para não se arriscar a morder um dos dezasseis furos. Não perdoaria a si mesma tal distracção. Era forçoso ir mordiscando a bolacha com extremo cuidado, esculpindo uma segunda bolacha mais pequena, onde poderia ler-se a palavra “Maria”, central, e sentir-se a textura dos pequenos pontos inscritos na massa. Maria posicionou à frente dos olhos o que restava do biscoito, para admirar a sua obra: ali estavam eles, intactos, rodeando as letras de pés duplos, os quais lembravam pezinhos de pássaros. O “I”, de uma só pata, podia ser um flamingo de cabeça escondida, um espeto ou um osso delgado, posto ao alto. Os “A’s” assemelhavam-se a cabanas de índio, duas pessoas de cabeças encostadas, a darem um passou-bem. Com uma satisfação infantil, Maria trincou, enfim, as duas extremidades que formavam um total de dezoito furos e só se deteve quando, na ponta dos dedos, sobrou apenas a palavra “Maria”. Tornara-se numa habilidosa artesã. Já só raramente lhe faltava o jeito. Estudando o brilho dos seus olhos, seria natural pensar-se que o pedaço minúsculo de bolacha constituía, quem sabe, o prémio pela sua minúcia, mas não. Esses poucos centímetros feitos de farinha de trigo, açúcar, gordura de palma, xarope de glucose, lecitina de girassol, bicarbonato e metabissulfito de sódio e glúten – há tantos anos gravados com o mais português dos nomes – eram a parte que Maria deitava ao lixo. Caso as senhoras da limpeza se dessem ao trabalho de vasculhar o que recolhiam diariamente na manhã seguinte, às sete em ponto, iriam encontrar, no fundo do caixote de plástico, seis Marias desprezadas.

domingo, 20 de março de 2011

Sophia

Entrámos no edifício imponente onde está instalada a Biblioteca Nacional, para vermos a exposição "Sophia, uma vida de poesia". Começo por discordar da escolha do nome. Sophia de Mello Breyner Andresen não dedicou a sua vida apenas à poesia como, aliás, o espólio da própria exposição demonstra.
À entrada, temos de deixar as carteiras dentro de um cacifo, onde colocámos uma moeda de 1 euro. Regulamento da casa e coisa nunca vista em tantas exposições espalhadas pelo mundo, com as mais ricas colecções. Será motivo para me indignar, ou para sentir vergonha dos utilizadores desta biblioteca, para quem não basta o dispositivo de segurança à saída?
Sophia teve direito a uma sala. Junto à porta encontra-se o catálogo para venda, completo e bem organizado, se bem que, para quem deseja ler as cartas nele reproduzidas, tenha de recorrer a uma lupa.
Silêncio. Eu e a minha amiga Ana Maria temos a sala só para nós, no momento em que iniciamos a visita. Logo verifico que ao meu lado tenho a companhia perfeita para conhecer Sophia um pouco melhor. Vejo-me numa verdadeira visita guiada. As palavras fluem da sua boca com naturalidade. Ávida e atenta, vou aprendo através da sua voz, que me fala na Sophia-criança, na Sophia-mulher, na Sophia escritora, na Sophia-deputada. Meia dúzia de mesas com tampo de vidro arrumam este precioso espólio com um tédio imenso e uma apresentação algo amadora: cadernos de notas, cartas, notícias em papel de jornal, fotografias, obras originais anotadas. O único recurso que encontramos à tecnologia é a digitalização esforçada de alguns documentos, que passam demasiado rapidamente, sem opção inter-activa: se quisermos ter tempo de ler 4 linhas, temos de esperar que a sequência retorne ao ponto de partida.
Impera a triste lei do menor esforço, sem fogo, sem chama nem calor.
A minha querida amiga, há dias dona de um exemplar do referido catálogo e de uma velha paixão pela escritora, compensa-me largamente e completa o texto interrompido de algumas cartas. Rimo-nos as duas ao verificar que ela sabe quase tudo sobre Sophia. Nesse instante sentimo-nos habilitadas a formular uma opinião sobre o uso que deram a este pequeno tesouro que confirma a vida riquíssima de Sophia. Entretanto, estão mais três pessoas na sala. Interrogamo-nos: porque não terão feito a exposição no Centro Cultural de Belém, que teria muitíssimos mais visitantes? Porque não recorreram às novas tecnologias que dariam maior visibilidade e dinâmica a estes conteúdos? Porque não destinaram um cantinho da sala para criar um cenário colorido, de modo a ilustrar o universo infantil da sua obra e cativar os mais pequenos? Uma vez que Sophia é uma autora conhecida internacionalmente, porque não recorreram a gravações áudio, traduzidas em várias línguas, para que portugueses e estrangeiros pudessem escutar os textos quase ilegíveis e conhecerem melhor o seu percurso? A luz das mesas é mortiça como o ar que se respira ali. Um ar sem ideias, sem vida nem calor. Uma senhora idosa aproxima-se e chama a nossa atenção: não estamos sozinhas, que falemos mais baixo, por favor... (como se estivéssemos a gritar ou a falar de futilidades como duas galinhas). Tenho vontade de responder-lhe: desculpe lá se estamos vivas, se ainda respiramos ou desejamos que Sophia  continue a respirar.
Obrigada, querida Ana Maria, pela companhia maravilhosa e por tanto que me ensinaste sobre Sophia, a Fada Oriana da nossa infância. Uma mulher que, apesar de homenagens cinzentas como esta, continua a respirar dentro de nós. Que venham outras exposições que lhe façam a merecida homenagem, como tu fizeste, com tanta paixão.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O segredo está na massa

Três e meia em ponto na sala de espera do dentista. Arrasto uma poltrona por uns metros, para poder ler e escrever com luz natural. Do consultório - que mantém a porta aberta assumindo o ambiente familiar e descontraído - chegam-me conversas animadas e o ruído do aspirador de saliva e da malfadada broca. É-me quase incompreensível, esta coisa de vir aqui por vontade própria e ainda por cima pagar. Pagar para sofrer. Deve constituir uma prova irrefutável de maturidade, como o dia em que começamos a comer bróculos e couves-bruxelas por auto-recriação, tomamos banho sem que nos ordenem, ou não deixamos de telefonar a agradecer um presente.
Passamos um mau bocado naquela cadeira.
A boca escancarada, os olhos a meia-haste, fixando o rectângulo de fibra de vidro que lança uma luz intensa e quente; as inúmeras ferramentas que entram e saiem da nossa boca, muito atarefadas a fazer obra.
Todas as 4ªas feiras às 15.30, por uns tempos, aqui estarei. Virei até que os meus dentes, depois de uma batalha feroz em equipa, reencontrem a sua dignidade.
Ironicamente, e mesmo respeitando as indicações da dentista ("uma hora sem comer, por causa da massa"), mastiguei, com paixão, uma sanduíche mista uma hora e meia mais tarde. A massa? Foi-se na massa do pão e em mim ficou nada mais do que uma cratera irritante e a sensação de um sacrifício inútil.

terça-feira, 15 de março de 2011

Bem me parecia...

Pagar bilhete

(Por Maria do Rosário Pedreira)

"Há encontros de escritores que são feiras de vaidades, onde falsos génios deambulam de nariz arrebitado e não existem conversas que não sejam maledicentes. Há outros, demasiado profissionais, nos quais impera o academismo em excesso – e daí ao bocejo é um instantinho. Há ainda aqueles em que nos divertimos muito e ouvimos histórias que nos transformam. Mas, em qualquer encontro de escritores, há pessoas que valem a pena e nos fariam pagar bilhete só para privar com elas alguns minutos e as ouvir falar das coisas mais comezinhas. Não há muito tive um desses momentos de prazer com aquele que julgo o maior nome da cultura portuguesa – esse mesmo em que estão a pensar. Acordáramos ambos preocupados com o que se estava a passar na Líbia e, juntos, corremos à papelaria em busca de um jornal. Como já não havia aquele que compraríamos num dia normal, eu acabei por desistir (pensando que, mais tarde, recorreria à Internet para me pôr em dia), mas ele aceitou levar um outro, de que a papelaria ainda dispunha. Sentámo-nos depois num sofá lado a lado – e ele foi folheando com calma e comentando as notícias até chegar àquelas páginas de anúncios muito sugestivos, que não só oferecem serviços óbvios, como ainda os ilustram com ligas, nádegas, seios e outra iconografia do tipo. Olhou para mim e disse-me: “Já viu? Este é o maior bordel portátil da Europa!” Genial, como sempre."
Ver o blog "HORAS EXTRAORDINÁRIAS", de Maria do Rosário Pedreira aqui



segunda-feira, 14 de março de 2011

terça-feira, 8 de março de 2011

Mulher

Abriu a torneira, despiu-se, deitou-se na água quente e fechou os olhos. Afundou o rosto, deixando que os cabelos se colassem à pele. Tomou consciência de cada poro, de cada fio de cabelo. O mundo desapareceu. O coração batia, fazendo-se escutar no silêncio da tarde, no mutismo da casa vazia. Estava sozinha, não só. Apenas a sós. A Beatriz de Chico Buarque dançava na sua memória, as notas da melodia que amava boiavam no banho, encostando-se às suas coxas, ao cotovelo, entre os dedos da mão. Em breve eles iriam voltar, trazendo o ruído e o caos, a inundar o resto das horas com perguntas e apelos, com a arrogância da sua fome, o narcisismo das suas vontades.
A água agora morna lembrou-lhe o passar do tempo. Escutou a chave na porta, os risos abafados do marido e dos filhos. Chegavam com casacos e mochilas, botas, gorros, luvas e sacos. Chegavam com muitas coisas penduradas de todos os lados: da boca palavras, das mãos objectos, dos olhos o dia, do coração a saudade.
Da cozinha, empurrados pela corrente de ar, vieram os vapores do guisado já pronto. Sobre a mesa esperavam pratos, talheres, guardanapos, copos, a cesta do pão, o jarro com água. O gato de barriga cheia enroscado na poltrona de veludo, inútil e decorativo como todos os gatos.
Abandonou o banho, interrompendo a sua paz. Vinte e três minutos bem contados.
- Chegámos! - Disseram.
- O que é o jantar?
- Mãe, posso jantar a ver o Dexter?
- Mãe, posso ir a casa da Mafalda depois?
- Mamã, dás colinho, pois dás?
- Amor, compraste-me o que te pedi?
Ela sorriu e disse que sim a todos, como se, com essa afirmativa, reafirmasse a sua vida de mulher.
(imagem: Nanã Sousa Dias)

domingo, 6 de março de 2011

Para ti, P.


BEATRIZ
(Chico Buarque)

Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da actriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que ela é louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da actriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da actriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida

sábado, 5 de março de 2011

Sem chão

Por vezes sente-se um solitário urso polar, sem se ter de pé, sem chão nem esperança. E à sua volta flutuam destroços de sonhos que não conseguiu agarrar, que nem tábuas de salvação foram. Onde estarão os outros? Pergunta-se. Que jangadas terão encontrado no que é para mim apenas solidão? Sem saber para onde ir, utiliza a força que lhe resta nos músculos e tendões; sem entender que para si não há finais felizes, esbraceja ao acaso, sem sorte nem jeito. As águas geladas que corta são o tempo que passa, uma imensidão implacável que a fará naufragar, se no horizonte não surgir, enfim, o chão que a salve.

sexta-feira, 4 de março de 2011

quinta-feira, 3 de março de 2011

Cartas de leitores: John Barry

Hoje, depois de algumas reacções ao 2º aniversário do blog, inauguro uma nova etiqueta: "CARTAS DE LEITORES". É a melhor Celebração que encontro.
A que publico aqui hoje nasceu do post dedicado a John Barry, compositor das bandas sonoras dos filmes do 007 e do maravilhoso filme "OUT OF AFRICA", no dia da morte do compositor.

Mário de Sousa disse...

"Sem dúvida que existem filmes que nos causam arrepios, e pelas melhores razões. O John Barry reuniu talvez os maiores filmes, ícones de várias gerações. Conseguiu a proeza maior de ser transversal a várias delas e morrer actual.

De repente, a evocação do 007 fez desfilar pela minha mente recordações antigas de um tio, cunhado da minha mãe, amante incondicional das coisas boas da vida e do 007 também. ‘The Bond way of life’ era uma bandeira para ele. Morreu muito novo, talvez por ter vivido a vida de um modo mais intenso do que devia. Assoprou tanto na brasinha que todo o calor se dissipou num riscar de fósforo.

Vivia com a minha tia e as minhas primas em casa da minha avó, e foi lá que conheci a maior biblioteca de livros policiais e espionagem da minha vida. Foi com ele que aprendi a gostar de Dick Haskins, Ellery Queen, Edgar Wallace, Jack Hunter e a incontornável Agatha Christie. A minha avó arreliava-se com ele porque ‘aquilo não eram livros para uma criança’, mas eu era o filho que ele não tinha.

Estava-se no final da década de sessenta do século passado e o cinema S. Jorge e o Eden faziam as delícias dos amantes das ‘girls Bond’ e o meu tio Júlio não falhava uma soirée seguida de umas imperiais na Solmar ou na Trindade. Depois, ao outro dia ao almoço, contava-me aquelas aventuras rocambolescas e mostrava-me os livros do Ian Fleming; e eu ficava deliciado, em êxtase, a olhar para aquelas raparigas, invariavelmente de vestido comprido, saltos altos e uma perna elegante a deixar-se adivinhar por uma saia meio aberta ou meio fechada. Ele, o James Bond, impassível empunhava uma pistola de cano comprido.

Que raiva que eu sentia por não ter 16 anos para poder ir ao cinema com ele. Então, prometia-me que assim eu tivesse idade, me levaria e me explicaria detalhes que agora ainda não tinha idade para compreender.

Não teve tempo para cumprir a sua promessa. Morreu bem, se assim se pode dizer; um ataque cardíaco fulminante no emprego. Naquele tempo, ainda não havia 112, nem desfribiladores, nem paramédicos de luvas brancas e coletes fluorescentes. Morreu sozinho, no chão do escritório onde o estenderam e lhe desapertaram o nó da gravata.

Quando me disseram, chorei de tristeza e o James Bond perdeu para todo o sempre, o encanto que para mim tinha. Descobri da pior maneira, que o meu herói não era ele mas sim o meu tio Júlio.

16 de Fevereiro de 2011 01:53

(...)

No verão de 2009 tive a oportunidade de visitar a Casa Museu de Karen Blixen em Rungstedlund na Dinamarca. Vivi por essa altura, talvez os momentos mais emocionantes da minha vida.

É muito difícil de explicar o que é África, o que e o que se sente quando se lá está, mas principalmente o que se sente quando A deixamos. É uma sensação de saudade, de perda, de orfandade. É uma sensação sufocante que nos tira as forças, mas que nos faz perceber o quanto é doloroso estar-se ‘ Out of Africa’!

Não conheço os planaltos do Kenya mas tenho presentes as xanas de Angola, os planaltos da Namíbia, as planícies de Coldra, as florestas de Casamansa, os mangais das Guinés. A magia que exerce sobre nós é qualquer coisa de inexplicável, tão inexplicável como os acordes de ‘Out of Africa’. Nunca um trailer foi tão devastador para a minha sensibilidade como o deste filme.

África não se explica, vive-se; não se entende, aceita-se; não se apreende, entranha-se; e tal como uma moléstia ‘boa’, toma conta de nós para nunca mais nos largar. É uma ‘doença’ crónica, inexplicável, arrepiante; é uma droga dura que nos consome por apropriação.

África, é também uma paixão, um céu, um mapa de estrelas, um sol, um pôr-do-sol, ou um renascer; África só pode ser sem dúvida, o berço da humanidade. Só isso pode explicar o seu mistério.

É muito difícil entender as palavras ‘I had a farm in Africa…’. É iniciático… Só quem lá esteve, só quem lá vive ou viveu, só quem se rendeu aos seus desígnios consegue entender todo o misticismo se não a tragédia, destas palavras. É passado e o passado em África dói…

Vera, grato por lembrar John Barry.
John obrigado por tudo o que fizeste."
 
(MÁRIO DE SOUSA, meu "aluno" no curso de Escrita Criativa "Escrevo o meu primeiro conto", que conheci entre Maio e Julho de 2010, e que brinda este blog com cartas maravilhosas como esta, enviadas desde terras africanas)
2ª Imagem: vista parcial da casa de Karen Blixen no Quénia.

terça-feira, 1 de março de 2011

Dois anos

Caros blogueiros, este blog completa hoje dois anos. Para festejar convosco, venho convidá-los a que escrevam um texto ou simples comentário, dizendo porque o visitam, o que esperam encontrar, quais as vossas impressões e posts com que mais se identificaram, enfim, o que quiserem. Podem sugerir outros blogs que costumem seguir, partilhar uma ideia, dar sugestões. Fico à espera!
Saudações virtuais