«São onze horas da manhã. Cheira a pão quente, acabado de cozer. As
grandes cestas de verga foram dispostas para as provas de queijos e outros
acepipes, com pão de cerveja, broas de mel, pão de especiarias, michas
perfumadas com anis e manjerona, pãezinhos com cardamomo. Rosalina labutou
arduamente nos últimos dias, preparando e acondicionando os ingredientes. Elaborou
os fermentos e leveduras, trabalhando nas primeiras horas da madrugada, no amassadouro
do pátio; alimentou o forno de lenha com nogueira e castanheiro. Furfuris deixou
Grotti a sós no moinho, para ajudar a padeira:
— A partir de amanhã, até
ao dia do Festival, vais lá para baixo —, dissera-lhe o moleiro — a minha mulher
precisa mais de ajuda do que eu. Por hoje estás dispensado, vai descansar, para
te habituares ao novo horário, anda!
Constrangido, o duende
passara mal as horas de descanso, pensando na mudança inesperada. Já se
habituara à vida na colina, junto à montanha. No dia seguinte de madrugada, contrafeito
e cabisbaixo, dirigira-se ao pátio situado nas traseiras da casa, e batera à
porta timidamente. Rosalina veio abri-la. Quando afastou a pesada porta de
madeira, observou o homenzinho cuja estatura não ultrapassava o nível da sua
própria barriga: olhos enormes e castanhos, orelhas pontiagudas; as mãos e os
pés eram desproporcionados em relação ao resto do corpo; usava um barrete
encimado por um grande guizo de ouro, que tilintava à medida que Furfuris
caminhava. A pele apresentava um tom amarelado e o nariz era grande e torto. Não
era bonito, mas a figura inspirava afecto. Entrou na grande cozinha e retirou o
barrete, mostrando os escassos cabelos ruivos na cabeça despida. Olhou em
volta: o recinto agradou-lhe, pois o forno quente e o cheiro da massa cozida
adoçavam o ar e convidavam à preguiça.
— Anda, meu querido, não
tenhas vergonha! Vou mostrar-te como as coisas funcionam por aqui. Furfuris
sorriu, animado. Era simpática, a Rosalina.
A cidade dormia ainda. Rosalina
passou-lhe um pano-cru, a fazer as vezes de avental e uma pega em forma de
luva, para a cabeça. O duende descobriu como se fazia levedura fresca e
acostumou-se ao cheiro azedo; aprendeu que o fermento era feito a partir do
sumo de meia dúzia de maçãs velhas misturado com água e farinha, e que se fazia
pão diferente com farinhas iguais, devido às misturas. Compreendeu que tudo se
aproveitava naquela cozinha, até as cinzas, as côdeas e o pão duro, num empadão
de legumes, uma tarte de cebola, açordas ou fatias douradas.
Dividiram a massa em
pedaços e trabalharam no amassadouro: com mão leve, Rosalina projectava a massa
de um lado para o outro da grande escudela. O duende ajudava, adicionando sal
fino. Era preciso reter o ar à massa, para lhe conferir corpo e elasticidade. A
mulher estendia-a com as duas mãos, dobrava-a sobre si mesma, num gesto rápido
e vivo e recomeçava o processo, de modo a libertar a massa das bolhas de ar.
Elástica, lisa e brilhante, descolando-se da superfície onde fora trabalhada, a
massa ficou, enfim, pronta a levedar. O duende pôde então meter mãos ao novo
ofício: formaram bolas, polvilharam-nas com farinha, colocaram-nas nos cestos
de vime. Furfuris agia com a lentidão e a falta de jeito de quem aprende uma arte,
mas Rosalina não pareceu importar-se. Cobriram-nos com um pano, e deixaram a
massa entregue à levedura. A combustão do forno, que cozia o pão já preparado
na véspera, formava a crosta dourada e estaladiça, com o calor forte da sua
garganta.
Os braços e as palmas das
mãos estavam doridos e os músculos e tendões pediam descanso. Era tempo de
parar. Rosalina abriu a porta do forno e retirou os pães acabados de cozer. Deu
uma pancada seca por cima de dois ou três e o som oco disse que estavam
prontos.
— Isto de fazer pão é serviço
que pede muito ao corpo! — Comentou a padeira, ao ver o ajudante derreado, de
traseiro no chão, ao fundo da cozinha. — Isso, meu querido, deixa-te ficar aí à
vontade, descansa um pouco, que eu vou num instante ao aliviadouro, como
diz o meu marido!
A sós, Furfuris deu mais
uma olhadela em redor: regressou ao pátio interior, a sentir o calor do forno.
Como a padeira se demorava, abeirou-se de uma enorme saca de farinha de trigo.
Colocando-se na ponta dos pés, cheirou-a, a tentar descobrir indícios da sua
velha rotina, pensando no vento que fazia girar os búzios, no velame que
dançava no alto da colina, no mastro, no assobio majestoso e grave que
acariciava as velas...de repente… atchiiiim! Um forte espirro fê-lo
desequilibrar-se. Cambaleou, girou os braços a tentar endireitar-se, mas...
tarde de mais! Caiu dentro da saca de farinha de arroz, que se encontrava atrás
de si. Quando Rosalina chegou veio encontrá-lo ali, dormindo o sono dos
inocentes. Sorriu à figurinha mergulhada no conforto branco e fofo, como
passarito num ninho de algodão:
“Não há dúvida, há farelo e farelo!”, pensou, com carinho.
Levou a candeia de azeite e
fechou a porta da cozinha: despertá-lo-ia mais tarde. Era uma mulher paciente e
costumava dizer, “a massa leveda, a gente descansa, com paciência tudo se
alcança”.»
(excerto do livro «A ILHA DE MELQUISEDECH», 1ª parte, Cap. 19, págs.107-110)