«Entraste-me na pele, atravessaste todas as minhas células e ficaste aqui, no núcleo de mim. Fui sendo várias pessoas, agigantando-me, aprendendo a ser o que não sabia ser contigo. A carne não é a mesma, tem história, tem tempo, tanto tempo. Mas quando lhe pergunto se ainda te conhece, diz-me que está contigo todos os dias, sem que eu saiba, cúmplice daquele outro bocado de matéria, feito de válvulas atravessadas pelo sangue, aquele pedaço pulsante para cima do qual atiram as culpas do amor. E esse, o coração? Esse ri, espantado com a minha inocência, por ver que entreguei ao tempo a responsabilidade de te arrancar do corpo. Como se ele, o tempo, fosse aspirador que aspirasse a ficar com a nossa história, sorvendo-a, camada por camada, até conseguir ver os nossos dias numa tela de cinema, porque fomos um filme invulgar, irrepetível. Não, o tempo não conseguiu penetrar-me como tu. Continuas aqui, no núcleo do que sou, na carne, na memória. Entras-me nos sonhos com o à-vontade de uma visita que é já da casa, com a destreza de quem nunca chegou a sair. E a cada vez que te visito, sempre me espanto e digo para comigo: pareces que foste ontem.»
(VERA DE VILHENA, blogue, 29 setembro 2009)
(VERA DE VILHENA, blogue, 29 setembro 2009)