segunda-feira, 9 de março de 2009

Crónica: As Palavras são Trampolins I

Hoje inaugurei-me como coordenadora de ateliers de Escrita Criativa. Não recorria aos transportes públicos há cerca de dez anos. Habituada que estava às carripanas da Rodoviária Nacional, da Carris e da Izidoro Duarte dos anos 80 e 90, muito me espantei com a sofisticação das camionetas actuais.
Quando abordei o jovem motorista (que era 2 em 1, pois têm de arrancar da paragem, conduzir, tirar bilhetes e dar trocos, tudo ao mesmo tempo, sem esquecer de cumprir o horário), qual não foi o meu espanto quando me dei conta da evolução da coisa:
- A senhora desculpe, sente-se aí e espere um bocadinho, que a máquina não está a funcionar. É um sistema novo, sabe? - E desabafa - o outro, o velho, funcionava sempre, este aqui tem dado problemas, uma chatice...
É que este, o actual - pasme-se! - funciona por satélite! Sim senhores, por satélite! É tudo muito giro, muito moderno, mas lá houve uma série de passageiros que viajaram à borla, pois saíram antes que o desgraçado conseguisse resolver o problema com a dita máquina moderníssima e sofisticada. No meu tempo "lá está, a frase dos velhos...), quando a coisa começou a modernizar-se, havia só um tijolinho cor-de-laranja que "trincava os bilhetes" com um sonoro "pling!" e nos carimbava o módulo. Funcionava sempre. Claro que agora os bilhetes são muito mais caros. Afinal, o sistema funciona por satélite, é preciso pagar, meus amigos!

Minutos antes de começar a oficina (odeio a palavra "ateliê"), fui informada, pela directora da biblioteca, de que a turma que iria enfrentar era, nem mais nem menos, uma das mais "complicadas" do concelho. Com um sorriso pesaroso e triste de quem diz: "o que é que se há-de fazer..?", conta-me que os vinte e um alunos vinham, em grande parte, de bairros sociais. Já se escutavam os gritos e os passos que ecoavam no átrio que dava acesso ao auditorio, quando ela remata com a frase animadora:
- Olhe, se conseguir sobreviver a estes, está preparada para qualquer turma! - e saíu, deixando-me com o ar retido nos pulmões, num prenúncio de pânico.
Sobrevivi.
Valeu-me a voz bem colocada pela experiência de vinte anos como cantora, para me fazer ouvir. Dos três jogos que tinha programados, consegui levar dois a bom porto. Quando me viram, dois ou três soltaram um cúmplice "Eh, pááá!!" e nesse instante vi a coisa mal parada. Deviam estar à espera de uma matrona de óculos e carrapito, e sai-lhes uma louraça de olho azul, quase magra. Nada faria prever o desfecho do encontro. Os jogos conseguiram, enfim, prender-lhes a atenção e a magia aconteceu, à meia luz, e ao som de fundo da "Cavalcata", de Astor Piazzolla. "As palavras são trampolins", o nome que dei a estas oficinas, provou que o são, de facto. A mesa sem graça - na qual os primeiros alunos iam pousando os objectos surpresa que levei num saco de padrão escocês - transformou-se em bancada de feira: um deles lembrou-se de colocar um lenço na cabeça e surgiu uma peça de teatro improvisada: "ai, lelo, a quanto é isto? Tão caro, lelo! Aceitas cartão de crédito?"; uma aluna escolheu um sabonete e inventou uma história que terminou com a beira-mar cheia de espuma perfumada; um outro, irremediável rebelde, transformou-se em velhinha e meteu ao barulho uma vela, uma lâmpada e uma caixa de fósforos, que faleceram violentamente num assalto à mão armada. Já para o final, todos erguiam o braço, pedindo para irem "ao palco": "Eu!Eu!Eu!Eu!" e quando terminou, tiveram pena. Eu também. Para a semana há mais e é dia de poesia. Aposto que esta turma terrível vai surpreender-me com uma mão cheia de poetas de improviso. Afinal, as palavras são trampolins, até para os que vivem nos bairros sociais.

6 comentários:

  1. Olha só. Estava eu para te mandar um mail ou uma sms a perguntar como tinha corrido a "coisa", e, num impulso já inculcado nos meus hábitos cibernéticos, disse cá para mim: deixa-me lá ver se a Vera já escreveu alguma coisa nova. E Pumba! Lá estava a resposta à pergunta que não cheguei a formular! Pois antes do mais, parabéns. Depois lembra-te, (acho que já estás a prova-lo) os miúdos mais "dificeis" são, por vezes, os mais cooperantes.
    Beijos, Zé

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  2. (P)oi Zé (risos. Percebeste a chalaça?), achei por bem vir escrever, enquanto ainda estava quentinha, acabada de sair do forno!
    Foi uma grande lição para mim também, é verdade. Muito obrigada pela fidelidade!

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  3. Querida Vera,

    Que bela historinha ou duas historinhas que contas aqui. E que bem que as contas.

    Quanto aos transportes, também com surpresa e prazer, voltei há pouco às viagens de Metro depois de muitos anos de lhe fugir como o diabo da Cruz.

    Quanto à escrita e aos meninos "maus", talvez um dia se perceba que as artes são muito mais eficazes que mandar as crianças para o psicólogo (que é uma espécie de polícia doce para boa consciência de famílias ansiosas,
    onselhos mais ou menos pedagógicos, ministérios desvairados face aos hiper-activos, disléxicos, mal comportados, revoltados, diferentes.

    A simples leitura, o teatro, a música, etc, etc, são os grandes caminhos para o crescimento dos meninos e para uma cidadania equilibrada, inventiva, desobediente e saudável.

    Nós, os das artes, sabemos isso. Quando os outros falham... Cá estamos nós.

    Continua, querida amiga. Com essa alegria e esse espanto. Esse caminho que começas a trilhar é o do futuro de nós todos.

    Muita ternira,

    José Fanha

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  4. Querida Verinha,

    são estes alunos que nos prendem ao desafio de ensinar!
    Dão luta... mas no fim, são os que marcam a nossa vida e a nossa experiência.
    E ver o resultado , uns tempos mais tarde, ainda é melhor.
    Sentir que a sua auto-estima e a sua auto-confiança aumenta com pequenos (grandes) gestos, como os que tu descreveste, faz-nos sentir que ganhámos o dia... cumprimos o propósito a que nos propusemos.
    Eh, eh! Muito bom!

    E como tu própria disseste... eles ainda te vão surpreender muito... tenho a certeza!

    Perco-me na tua escrita! Por isso, com toda a certeza, acompanhar-te-ei diariamente neste blog... ( já que para te ver é quase impossível!!)

    Beijo grande!

    Muito sucesso para esta nova etapa!!

    ( Acho que a parceria entre a música e a escrita criativa é altamente bem conseguida!! ... ;)...)

    Rute Alves

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  5. Adorei esta história de meninos complicados! Parece que estava a ler um livro ou a rever-me em certas situações!
    Fiquei fã e vou acompanhar este percurso.
    Visite-me também em histórias con(m) vida...
    http://isabelpreto.blogspot.com

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  6. a Pastelaria Central da Penha manda-lhe um grande beijinho e muitas felicidades.
    do Luis e da Isabel

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