"Em África os mortos não existem (...) Há um Deus que está desempregado, pois o mundo sempre existiu."
"Tenho caderninhos. Quando saio como biólogo, levo o caderninho das coisas sérias. Quando quero ser levado a sério, apresento-me como biólogo. Às vezes troco os cadernos..." (risos na sala)
"A velhice é uma coisa que eu ainda não sei pensar. Há dias em que eu sou muito velho. A velhice não tem solução. Há que esperar que o tempo nos surpreenda, nos dê alguma coisa."
Nos primeiros minutos não tomei muita atenção, pois estava ainda presa à consciência de estar ali. Como eu, muitos se haviam deslocado à biblioteca de Oeiras às 21.30 de um dia de semana, para vir conhecer o autor das palavras "abençonhadas".
Mia bichanava frases cheias de poesia escondida, como se, falando connosco, alinhavasse um livro novo, em que nós, leitores, representássemos um pequeno papel. Quando Mia se calava, eu aproveitava para espreitar o ambiente da sala. Reparei na gentileza própria de quem ama os livros e que escolhe estar ali e não em frente ao televisor, depois de um dia de trabalho. O ar abafado era atenuado por um espírito de boa vontade, que fazia saltar os novos das cadeiras, para dar lugar aos velhos ou a quem vinha carregado de livros. Naquelas duas horas, senti um clima de cumplicidade entre os que desejam acrescentar algo de mais profundo aos seus dias. Às tantas, Mia soltou uma frase deliciosa ao falar de africanidade, definindo-a assim: “dar um beijinho numa cenoura”.
Mia fez-nos rir várias vezes e senti-me grata por isso. Era algo de certo, estar ali, naquela estranha sintonia com um grupo de gente anónima com quem reparti risos e sorrisos. Partilhou connosco a sua fama de espírito sonhador, desde a infância, que muitas vezes o salvava de responsabilidades, no seio familiar: “é melhor não, ele vai estragar, vai perder, vai partir…”.
Ao chegar o momento mais esperado, a multidão transformou o seu comportamento, na ânsia de levar para casa os livros autografados. Em poucos minutos, o autor parecia afundado num mar de gente. Aguentou estoicamente o entusiasmo dos leitores (mesmo quando entornaram o seu copo de água sobre a minúscula secretária), dando autógrafo atrás de autógrafo, deixando-se fotografar com máquinas digitais e telemóveis, que surgiam como pragas. Uma leitora vibrante agarrou-lhe no braço direito, e exclamou: “o senhor é um sonhador!” (como se ele precisasse que lho lembrassem).
Mia fez-nos rir várias vezes e senti-me grata por isso. Era algo de certo, estar ali, naquela estranha sintonia com um grupo de gente anónima com quem reparti risos e sorrisos. Partilhou connosco a sua fama de espírito sonhador, desde a infância, que muitas vezes o salvava de responsabilidades, no seio familiar: “é melhor não, ele vai estragar, vai perder, vai partir…”.
Ao chegar o momento mais esperado, a multidão transformou o seu comportamento, na ânsia de levar para casa os livros autografados. Em poucos minutos, o autor parecia afundado num mar de gente. Aguentou estoicamente o entusiasmo dos leitores (mesmo quando entornaram o seu copo de água sobre a minúscula secretária), dando autógrafo atrás de autógrafo, deixando-se fotografar com máquinas digitais e telemóveis, que surgiam como pragas. Uma leitora vibrante agarrou-lhe no braço direito, e exclamou: “o senhor é um sonhador!” (como se ele precisasse que lho lembrassem).
Da minha parte, ficou uma sensação reprimida de sabor a pouco: queria ter-lhe dito algo que o fizesse lembrar-se de mim, mas ao observar aquele cenário, vendo “o meu Mia” ser submergido por um rebanho faminto de livros em punho, só tive coragem de lhe oferecer um olhar carinhoso e directo, enquanto dizia: “para a Vera, por favor”, agradecendo, sorrindo, tentando transmitir-lhe com os olhos um bocadinho de paz no meio daquele caos. Gosto de acreditar que algo o fará recordar o instante em que estivemos juntos, segurando o seu livro a quatro mãos, numa viagem-relâmpago de origem e destino incertos, como são os livros eternos que os escritores partilham com o mundo.
Hoje parece que foi dia de Escritores, também conheci o escritor Augusto Carlos, que também adora o Continente Africano:)
ResponderEliminarAmbos transmitiram mensagens calorosas, por entre risos...Que sorte, teres estado com Mia Couto. Os "sete sapatos sujos" tornaram o escritor inesquecível, para mim.