Esta manhã li no jornal O Público: faz hoje 50 anos que o Cristo-Rei anda a abraçar Lisboa e o Tejo. Na minha novela "O Pisa-papéis", que publiquei há precisamente três anos, existe um excerto onde este monumento assume um papel de quase protagonista. A foto, que usei como fundo para a capa do livro, foi tirada pelo fotógrafo Nanã Sousa Dias, em Alfama.
"Conduzi, como sonâmbulo, até à Ponte 25 de Abril. Caía agora uma chuva torrencial. Os maxilares doíam-me, mal conseguia ver do olho esquerdo. Saí para Almada, e cheguei onde queria: Pragal. Praga.
Outro sinal?...
Estacionei junto ao enorme e feio pedestal em betão, de pilares ocos encimados por um representante barbudo que, de braços abertos, parecia fazer-me o convite pérfido:“Anda, sobe! Está na hora de fazeres um favor à Humanidade!”
Afastei-me, olhei para cima, entontecido pelo excesso de água e pela iluminação crua, que me feriu os olhos.
Estava fechado. Uma maldita placa não permitia sequer a passagem. Outra fantasia frustrada, não morreria lançado dos braços do Cristo-Rei. Arrastei-me até ao carro. Fechei-me e adormeci, esperando que um grupo de marginais viesse assaltar-me durante a noite, libertando-me dos horrores da guerra que era viver. Sonhei que o Cristo-Rei me abraçava e me erguia no céu, embalando-me na sua túnica e antecipando a minha morte - solto da estrutura cinzenta, levou-me num voo panorâmico sobre a cidade adormecida, com as minúsculas luzes brancas e amarelas, que cintilavam debaixo dos meus pés. No instante em que atravessávamos o rio, pude ver a Sofia e os miúdos, pequeninos, acenando-me do cacilheiro, sorridentes, enquanto rasgavam o meu romance: “Está bem assim, pai? Ainda não está tudo, não vás embora, espera!”
A última imagem que recordei foi um enorme bando de folhas A4, esvoaçavando sobre Lisboa, rodopiando, sem chegar a bater no solo – ficaram ali, numa dança bela e macabra, esbofeteando-me com o ruído ensurdecedor de asas quebradas, por cima, por baixo e em volta de mim, invadindo o horizonte de panfletos fúnebres.
Acordei. O dia tivera o desplante de amanhecer límpido. Fiz um esforço por recordar as emoções que me haviam conduzido até ali, mas não consegui – como o escritor que não agarra a ideia a tempo e a perde, irremediavelmente. Já não sentia vontade de morrer.
O corpo lembrou-me os últimos acontecimentos, talvez tivesse uma ou duas costelas partidas. Olhei-me ao espelho retrovisor – uma bola arroxeada e disforme deu-me os bons-dias. À luz de um sol inesperado, achei-me mais inclinado a tratar das mazelas, do que a terminar com tudo. Desci o vidro. Lisboa estendia-se à minha frente, convidativa, sob um filtro rosado. A chuva retocara as cores da cidade, deixando os contornos mais visíveis, o ar mais lavado As narinas dilataram-se ao toque aprazível do cheiro a terra molhada. Respirei fundo, insensatamente, e contraí-me ao choque das lâminas que me atravessavam. (...)
Saí do carro, a custo. O céu rosa, salpicado de nuvens púrpura, ia azulando, à medida que o sol se impunha. Podia ver os contornos das casas bem desenhados, o Tejo, os primeiros carros do outro lado do rio. Tornei a olhar para o Cristo-Rei: os braços abertos não me pareceram tão convidativos – afastei-me para ver melhor o guardião do Tejo, que parecia agora zombar da minha cobardia e ordenar-me, com autoridade, que voltasse para casa.
Liguei a ignição e obedeci."
(excerto da novela "O Pisa-papéis", págs.115-116, Vera de Vilhena)
Como deves calcular, sou suspeito para comentar, pois tive a felicidade de ler o teu livro. Aproveito para reiterar o meu lamento pelo facto de não teres publicado mais nada.
ResponderEliminarAssim, vou-me contentando com as tuas asserções escritas neste blogue, o que é, de igual modo, bom, mas com sabor a pouco, claro!
Beijos,
Zé
Meu querido amigo, mais importante do que publicar é escrever e isso, felizmente, vou fazendo. O resto não depende de mim. Na verdade, é o que temos... e temos pena. Beijos agradecidos, Vera
ResponderEliminarHá um prémio de distinção no meu Blog, que ofereço à Vera, que admiro, por ser única!
ResponderEliminarObrigado, Vera, pelo mail a responder ao meu pedido.
~Poucas pessoas se importam com os outros, actualmente.
Beijinhos
Querida Isabel, um dia li algures que a Era da Tecnologia e dos computadores mergulhou as pessoas num frio individualismo... não podiam estar mais errados, pois o que mais conta é a forma como aproveitamos o tempo livre de que dispomos (e que alguns inventam!). É bem palpável, o seu carinho, bem como a dedicação da família com quem estou tão pouco, dos velhos amigos e dos que vou ganhando, neste recanto. Afinal, temos tanto para oferecer, para conversar e descobrir! Obrigada, querida desconhecida, e o prémio continua seu, pois o seu blog, que vou espreitando, é um poço de carinho, que a Isabel preenche a cada dia. Um abraço amigo, Vera
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