A caminho de Leiria, o clima dentro do carro era tenso. Viagem escusada, episódio provocado pela minha cabeça de vento, de quem pensa de mais em estrelas, nuvens, luas, sóis, anjos e duendes. A falta de jeito para ser crescida. O céu, cinzento, carregado. A luz, mortiça, sonolenta. Era preciso recuperar a identidade esquecida a 200 quilómetros de casa, numa cafetaria. O objecto que todas as mulheres seguram, como um apêndice, sobre o ombro direito. A bendita carteira esperava-me perto de Leiria, depois de duas semanas de aventuras e passeios, nas mãos de estranhos.
Enfim, encontrámos a Sub-delegação da GNR:
- Queira, por favor, conferir o conteúdo: um porta-moedas com vários cartões e documentos, x em dinheiro (tenho vergonha de dizer quanto lá tinha); uma máquina digital, um conjunto de chaves...
Tive sorte, estava tudo lá. Asssinei, saí de carteira ao ombro. A minha carteira, finalmente.
De regresso, à ideia reconfortante de terminar a viagem fastidiosa, as janelas da alma abriram-se um pouco. Cúmplice, o céu imitou-nos e estendeu um mantilha de nuvens como um rebanho tresmalhado, ao sol. Vendo-as tão rasteiras, imaginei que saltava num poderoso trampolim, para arrancar pedaços de nuvens com a mão. Registei a imagem no meu bloco de notas mental. O cinza tornou-se verde e revelou uma paleta de cores inesperada. O transtorno da viagem desfizera-se, como aquele espesso manto de nuvens de chumbo.
O condutor decidiu-se a fazer um desvio pela costa, fugindo à monotonia do alcatrão. Espreitámos as ondas douradas do entardecer e chegámos a casa, com alívio. Lar doce lar. E a certeza de ter recuperado a minha identidade: agora sim, aos olhos do mundo, existo outra vez.
... e uma aguarela de palavras para ler.
ResponderEliminar