Para ilustrar a palavra de ordem entre os escribas (eles sabem quem são), trago um texto que tenho em gaveta, porque somos assim, como o quadro de Dalí, compostos por gavetas irregulares e semi-abertas (ou semi-fechadas?) na solidão de um quarto, pedindo uma espécie de socorro ao mundo que vive lá fora, sob a luz, num gesto de mão que não sabemos bem se representa aceno e convite, medo ou proibição. E o corpo assim, descarnado, o esqueleto quase em exposição, cada gaveta uma costela.
Quando era pequena, tinha a mania de bafejar os vidros das janelas e fazer desenhos. Era uma maneira de matar as horas de inverno e fazer alguma coisa alegre daquela condensação fria e triste, enquanto se ia revelando o mundo lá fora, à medida que o desejo avançava. Recordando isso, saíu-me isto...
Hálito
Sou criança sem recreio
Atrás de um vidro de inverno
Lanço pequenas nuvens brancas
Sobre os olhos desta casa
Na tela limpa, sem receio
Transformo os dedos em pintores
No hálito morno das minhas asas
Desenho amores que desprezei
No longo inferno das minhas dores.
Em dias maltratados
Limpá-los, é tudo o que sei
Com aerossóis e jornais do dia
Onde letras miúdas de injuriados
Contam a ofensa das fortunas
Dos submarinos e foguetões
Pontes e estradas e até carris
E fecho a janela, com débil prudência
Ao mundo de bandidos e ladrões
E temo escapar por um triz
Já não traço sóis nem tantas meninas
Não trago amores nem luas frias
Não espreito as abelhas nas flores do jardim
Escondida à janela cristalina
Escondida do mundo, perdida em mim
A pureza teimosa do vidro
Que os meus dedos já não embalam
Quer ser jardim, menina, cupido
Mas ao olhar as lágrimas frias
Escorrendo em gelo derretido
Só vejo ruas, olho os candeeiros
E a cinza invernosa, sem abrigo
E, ai de mim! Terei de os limpar
Quando a janela deixar de chorar
Os olhos da minha meninice
Não são anseios, não são retiros
Nas mãos confirmo um novo pesar
As sombras risíveis da velhice
E guardo o meu hálito já crescido
Para a amargura dos meus suspiros
(Poema meu, Setembro 2010, imagem: "O Contador Antropomórfico", 1936, SALVADOR DALÍ)