terça-feira, 8 de março de 2011

Mulher

Abriu a torneira, despiu-se, deitou-se na água quente e fechou os olhos. Afundou o rosto, deixando que os cabelos se colassem à pele. Tomou consciência de cada poro, de cada fio de cabelo. O mundo desapareceu. O coração batia, fazendo-se escutar no silêncio da tarde, no mutismo da casa vazia. Estava sozinha, não só. Apenas a sós. A Beatriz de Chico Buarque dançava na sua memória, as notas da melodia que amava boiavam no banho, encostando-se às suas coxas, ao cotovelo, entre os dedos da mão. Em breve eles iriam voltar, trazendo o ruído e o caos, a inundar o resto das horas com perguntas e apelos, com a arrogância da sua fome, o narcisismo das suas vontades.
A água agora morna lembrou-lhe o passar do tempo. Escutou a chave na porta, os risos abafados do marido e dos filhos. Chegavam com casacos e mochilas, botas, gorros, luvas e sacos. Chegavam com muitas coisas penduradas de todos os lados: da boca palavras, das mãos objectos, dos olhos o dia, do coração a saudade.
Da cozinha, empurrados pela corrente de ar, vieram os vapores do guisado já pronto. Sobre a mesa esperavam pratos, talheres, guardanapos, copos, a cesta do pão, o jarro com água. O gato de barriga cheia enroscado na poltrona de veludo, inútil e decorativo como todos os gatos.
Abandonou o banho, interrompendo a sua paz. Vinte e três minutos bem contados.
- Chegámos! - Disseram.
- O que é o jantar?
- Mãe, posso jantar a ver o Dexter?
- Mãe, posso ir a casa da Mafalda depois?
- Mamã, dás colinho, pois dás?
- Amor, compraste-me o que te pedi?
Ela sorriu e disse que sim a todos, como se, com essa afirmativa, reafirmasse a sua vida de mulher.
(imagem: Nanã Sousa Dias)

5 comentários:

  1. Pois é, Vera. Somos isso tudo, por isso, é que as mulheres são tão lindas e especiais.
    Beijinhos e um doce dia.

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  2. Revi-me nesta narrativa... :) Como muitas mulheres, suponho. É bom ser mulher. É ainda melhor quando existem mulheres tão especiais a serem-nos amigas. Obrigada Vera! Mulher extraordinária e amiga de todas as horas. Mil beijos!
    Atrasados em relação ao dia da Mulher, mas sempre actuais, nos dias que são todos nossos...

    Rosarinho

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  3. Olá Vera
    Esperei deliberadamente estas quase duas semanas na esperança de ver entre os possíveis comentários, um, só um que fosse, escrito por algum dos seguidores masculinos do seu blog. E foi com uma curiosidade quase clubística que o visitei, dia após dia, esperando, pelos vistos em vão, por esse tal acto de justiça: um homem comentar alegremente o Dia Mundial da Mulher. Não tenho qualquer procuração nem este meu comentário significa mais do que isso mesmo, a minha maneira envergonhada de expressar toda a minha admiração pelas mulheres e por tudo o que elas têm significado na minha vida.
    São três as Mulheres que têm preenchido a minha existência: Mãe, Mulher e Filha. A ordem não significa importância mas sim antiguidade, pois a importância de cada uma delas tem sido transversal às suas gerações e como tal à minha vida. Amo em cada uma delas a força, a perseverança, a entrega e a intensidade com que vivem e se dedicam a quem amam, resolvendo sempre bem os possíveis conflitos que possam advir da partilha de espaços e afectos.
    No entanto, o que mais admiro nelas é a sua maternidade. Ser pai é realmente fantástico mas é algo que se absorve de fora para dentro; já ser mãe é ter a possibilidade de gerar dentro de si a vida. E isso para nós homens é um mistério que por vezes se torna muito difícil de entender.
    Por tudo isto, e porque acredito que sou capaz de entender um pouco desse mistério, sinto que é importante para além de homenagear a Mulher, homenagear a MÃE. E que melhor forma de o fazer senão lembrar aqui a Maria Henriqueta que em 1953 deu à luz este seu comentarista.
    Nos idos anos de 70 do século passado havia uma guerra que sendo para todos os portugueses era na realidade só de alguns. Os pais viviam na aflição de verem os filhos partirem e os filhos, na sua jovial imortalidade partiam para longe, por vezes para sempre.
    Um dia, na Ordem de Serviço da Escola Prática de Infantaria saiu o meu nome para uma rendição individual. Ora isto só acontecia quando o antecessor tinha tido um fim triste, o que implicava que a sua substituição seria tudo menos pacífica. Nesse dia não fui capaz de ir a casa; não sabia o que dizer ou contar aos meus pais principalmente à minha mãe. No dia seguinte, uma quinta-feira não esqueço, depois de jantar e entre dois cigarros, desabafei, disse que não era justo mas tinha de ir, outros já lá estavam e precisavam de ser rendidos. Não era uma questão de dever era, isso sim, uma questão de estar bem comigo próprio.
    ... / ...

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  4. ... / ...

    A minha mãe, sentada ao meu lado ouviu em silêncio; nem um músculo se lhe mexeu na cara. Perguntou apenas com voz sumida … quando vais? Peguei-lhe nas mãos e sentia-as a esfriarem quando lhe disse … já para a semana que vem! Levantou-se e com a voz a tremer foi dizendo … Vou-te arranjar mais uma farda e alguma roupa de Verão; a Armanda disse-me que o filho dela tem passado muito com o calor … Mais nada, nem uma lágrima.
    A noite arrastou-se, nem a Lua foi capaz de subir, ou eu não a vi. De madrugada levantei-me e da janela do quarto fui contando as telhas do telhado em frente, até o despertador tocar anunciando que a vida voltava novamente a começar. Senti uma mão no ombro e um beijo quente e molhado na face. Em segredo a minha mãe ciciava-me ao ouvido: Filho, vais voltar, vais ver que voltas bem. Anda, já te aqueci o leite.
    Olhei então para aquela mulher, a cara da cor da cera e uns olhos inchados de chorar mostravam uma noite pior do que a minha. Mas este é o retrato heróico de uma mãe, a sua capacidade de chorar e sofrer em silêncio.
    Passaram os anos e eu voltei. No abraço que me deu e na força com que me apertou no reencontro, pareceu-me sentir ainda o calor daquele beijo madrugador, interrompido anos atrás. Todo eu fui absorvido sofregamente, como que procurando certificar-se de que do seu menino, tudo lhe estava a ser devolvido. Mas não. Do menino vinha tudo excepto a inocência perdida naquelas terras longínquas. Ninguém sobrevive a uma guerra, apenas alguns não morrem… Devo-te esse abraço, Mãe!
    Por tudo isto não entendo porque é que os homens insistem em não comemorar o Dia Mundial da Mulher.

    Um abraço grande Vera e até à próxima.
    Mário de Sousa

    É verdade, Não menos bonito que o seu texto é a fotografia do Nanã. Parabéns para ele também.

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  5. Caro amigo Mário,
    estou-lhe grata por este testemunho que aqui deixa, com marca masculina. Tem razão, os homens abstiveram-se, mas na verdade, à excepção de um ou outro comentário mais raro, são as mulheres que comentam :) Não me pergunte porquê, que não saberia responder-lhe.
    Como já vai sendo costume, tornou este blog mais rico com as suas memórias. As boas e as menos boas. Obrigada por partilhar aqui, comigo e com quem me lê, a sua intimidade, sempre tocante e por esta bela homenagem a quem põe filhos no mundo.
    Um grande abraço e um carinho especial para as três mulheres da sua vida.

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