quinta-feira, 25 de agosto de 2011

"A arte não pode ser política, nem sujeição social, nem glosa duma ideia que faz época; nem mesmo pode estar de qualquer forma aliada ao conceito «progresso». É algo mais. É o próprio alento humano para lá da morte de 
todas as quimeras, da fadiga de todas as perguntas sem solução."

(AGUSTINA BESSA-LUÍS)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Sabedoria

A sabedoria anda por aí, espalhada pelos filmes, nas páginas dos livros, na boca das pessoas, empurrada pelo vento. E nós, na distracção dos dias, percorrendo as ruas e chutando pedras no caminho, vamos por vezes tão alienados que somos incapazes de ver o que nos vibra nos olhos e ouvidos, o que se encontra debaixo dos nossos pés. A sabedoria banalizou-se, na respiração acelerada em que vivemos. Na abundância oferecida às golfadas, como água em bocas secas. Na ânsia de devorar o tempo. E no meio desse redemoinho é difícil ouvir o coração bater e renovar o sangue viciado. Quem me dera que o mundo metesse travões a fundo, para podermos apear-nos e ir a pé. Talvez desse modo fosse possível reparar no caminho que percorremos e, quiçá, mudarmos de rumo.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Renovação

Por vezes as relações humanas são como os seres vegetais. Ramos secos que já não vingam, esforçados, desistentes, fracassados. E se lhes tivermos amor, precisamos de reunir coragem e segurar nas mãos decididas a tesoura de podar. Desbastando sem piedade, suspirando ao ver acumularem-se no solo pequenas flores que despontavam no extremo dos ramos moribundos, sabemos que o tempo irá trazer renovação. E um dia olhamos atentamente e descobrimos as folhas tenras, a promessa de uma flor, onde  a vida já não parecia possível.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A fatalidade do Não

A palavra de que eu gosto mais é não. Chega sempre um momento na nossa vida em que é necessário dizer não. O não é a única coisa efectivamente transformadora, que nega o status quo. Aquilo que é tende sempre a instalar-se, a beneficiar injustamente de um estatuto de autoridade. É o momento em que é necessário dizer não. A fatalidade do não - ou a nossa própria fatalidade - é que não há nenhum não que não se converta em sim. Ele é absorvido e temos que viver mais um tempo com o sim. 

José Saramago, in 'Folha de S. Paulo (1991)'
Roubei no site "CITADOR"

domingo, 14 de agosto de 2011

Universo

Um verso apenas
Para enumerar as paixões
Para chorar nossas penas
Ou quebrar ilusões
Um verso só
Músculo ínfimo
Minúsculo, íntimo
Transformado em pó
Se no início era o verbo
E nele existe movimento
Em quietude me pergunto
Será o inverso o fim?
Neste meu pensamento
Inscrevi um mundo imerso
Com uma palavra apenas
Fiz nascer algo perverso
Um verso apenas
Um verso só
Eis o meu solitário 
Universo


(VERA DE VILHENA)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Uma boa surpresa

O carteiro afastou-se na sua mota. Para trás deixou um rasto de cães ladrando com fúria. Despedi-me do sol, já alto, e vim vasculhar o correio virtual. Um postal de parabéns enviado pela escritora Alice Vieira: imagens a transbordar de natureza campestre, uma canção de fundo, numa voz feminina, a celebrar os meus sonhos e isto de eu estar no mundo e torná-lo melhor, como se eu fosse importante e fizesse falta. Enterneço-me e sorrio pelo privilégio desta amizade à distância. Admiro a força e generosidade desta mulher que, na vertigem em que o seu corpo se encontra, inventa ainda tempo para mimar os amigos e contagiar-nos com a seu bom humor.
Lembro-me que ainda não fui ao correio. Desço as escadas e acaricio o serra da estrela que faz a sesta à sombra, amolecido pelo calor da tarde. Retiro o recheio da caixa branca. Desta vez não traz contas para pagar, mas uma boa surpresa: um postal brilhante e colorido, a transbordar de infantilidade e inocência, minuciosamente preenchido, transformado em carta. Anuncia e explica a escolha do presente. Chega-me de uma amiga do coração, descoberta ainda a cheirar a novo como tinta fresca: a Ana Maria. Ambas lemos, há pouco tempo, a biografia de Clarice Lispector, que deixa em nós a urgência de conhecer a obra integral da escritora. Uma sugestão preciosa da Patrícia Reis, que pelo caminho vai semeando boas leituras. E é com prazer que retiro do grande envelope o meu presente: "Perto do Coração Selvagem", o primeiro romance publicado de Clarice Lispector, escrito na adolescência.
Obrigada, amiga! Receber coisas destas pelo correio é um consolo para a alma. E estamos todos a precisar tanto de consolo, não acham?

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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Restart

Malas no carro, beijos e abraços, agradecimentos mútuos, votos de boa viagem e de continuação de boas férias. O carro partiu embalado por mãos que acenavam em despedida. Entre a bagagem um frasco de doce de amora, depois de uma investida a seis pelas matas carregadas de silvas e frutos silvestres. Soube a pouco. O tempo voou. Ficaram por cumprir muitas horas: tardes de preguiça entregues à leitura, a praia, outros filmes e lugares, os crepes com molho de chocolate, o desfecho de tantas conversas interrompidas pelo riso, pela arrogância das ideias que se entrelaçam noutras. Ficou a promessa de um fim de semana de outono, com lareira e vinho tinto, a paisagem fresca e fértil, retemperada pelas chuvas.
Fecho a porta e regresso à vida de antes. À palavra escrita. À preguiça. Aos livros. À solidão deliberada de quem trocou a vertigem urbana pelo silêncio de uma paisagem campestre. Respiro fundo e deixo entrar a resignação. Passo os olhos por esta meia dúzia de dias e chego à conclusão de que existe um certo conforto na tristeza de ver alguém partir. A prova palpável de que vivemos algo que vale a pena repetir.
Obrigada Vasco, Rita e Matilde.
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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A tristeza dos portugueses

"Porque é que os portugueses são tristes? Porque estão perto da verdade. Quem tiver lido alguns livros, deixados por pessoas inteligentes desde o princípio da escrita, sabe que a vida é sempre triste. O homem vive muito sujeito. Está sujeito ao seu tempo, à sua condição e ao seu meio de uma maneira tal que quase nada fica para ele poder fazer como quer. Para se afirmar, como agora se diz, tão mal. 
Sobre nós mandam tanto a saúde e o dinheiro que temos, o sítio onde nascemos, o sangue que herdámos, os hábitos que aprendemos, a raça, a idade que temos, o feitio, a disposição, a cara e o corpo com que nascemos, as verdades que achamos; mandam tanto em nós estas coisas que nos dão que ficamos com pouco mais do que a vontade. A vontade e um coração acordado e estúpido, que pede como se tudo pudéssemos. Um coração cego e estúpido, que não vê que não podemos quase nada.
Aí está a razão da nossa tristeza permanente. Cada homem tem o corpo de um homem e o coração de um deus. E na diferença entre aquilo que sentimos e aquilo que acontece, entre o que pede o coração e não pode a vida, que muito cedo encontramos o hábito da tristeza. Habituamo-nos a amar sem nos sentirmos amados e a esse sentimento, cortado por surpresas curtas, passamos a chamar amor. E com verdade. No mundo das ausências, onde a tristeza vem de sabermos muito bem o que nos falta, a nós e àqueles que nos rodeiam, a bondade, que nos torna vulneráveis aos sofrimentos daqueles que nos acompanham e nos faz sofrer duas vezes mais do que se estivéssemos sozinhos, é o preço que pagamos por não sermos amargos. É graças à bondade que estamos tristesacompanhados. Há uma última doçura em sermos tristes num mundo triste. Igual a nós." 

Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'