domingo, 29 de novembro de 2009

A porta

Tantas vezes ensaiara aquilo, que agora que acontecia não estava certa de que fosse real. As queixas eram antigas como a poeira; os passos haviam sido repisados uma e outra vez, até o seu desenho se tornar em algo disforme, indistinto. Os gritos e os murros na mesa repetidos tantas vezes, que as vozes e as mãos tinham esquecido palavras, promessas, carícias. Aguardara o momento certo, mas tal como se espera o dia de gerar um filho na desventura, também esse tardava a chegar. E assim resolveu tornar-se mãe da própria vida, dona dos seus passos, emoldurá-los, encarcerá-los, se necessário fosse, para que não tornassem a fugir-lhe; mesmo sem ter como alimentar aquela vida autónoma sem autonomia, sem ter como alimentar o seu alimento. Mas de fome estava ela cheia. Fome de ser livre, de sofrer sozinha. Nos últimos anos andara submersa num sofrimento desencontrado, o diálogo era uma corda bamba, desfiando-se num ruído ensurdecedor, intolerável. Todos os dias dizia, Estou farta, farta, mas escolhia ficar, só mais umas semanas, como quem espera o próximo período fértil para conceber um filho. Andava estéril de vida, seca nos seus dias. O tempo ofendia-a, passando por ela com desprezo. A vida era dos outros, não sua. A felicidade deles magoava-a como o estalo de uma mão injusta, que se abate no rosto quando menos esperamos. Não fui eu, pensava ela, recordando as ofensas em criança. A carne a arder, o coração infantil em chamas de raiva. E tal como então se fechava no quarto, a chorar o agravo, assim fizera em mulher, durante aqueles anos, sufocando a voz na almofada, não fui eu, não fui eu. Desta vez fora ela. Fora ela a escolher aquele homem, aquela casa, aquela vida. Fora ela a conduzir-se até ali. E assim se penitenciara, adiando a partida. Protelando o fecho definitivo da porta. Saiu nessa tarde, grávida de susto. A cada passo, um precipício, a cada aceno lhe decepavam as mãos. Mas de passos cautelosos estava ela cheia, de mãos vazias estava ela farta. Sim, a incerteza tornou-se a certeza dos seus dias, mas as noites, essas, dormiu-as em paz. Jamais o silêncio fora tão belo, nem a solidão tão frágil. As manhãs seguintes iam-lhe dentro do peito, a cada vez que abria a porta da que era agora a sua casa.

Imagem: Nanã Sousa Dias

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