quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Desencontrada do corpo

Olhou para a fotografia tirada na festa e para o top ousado, que deixava ver os ombros nus. Estou mais magra, pensou, feliz. Depois olhou-se com olhos de realidade e o que viu desfez a ilusão: aquele corpo franzino mostrava a sua idade. Era o esqueleto que se anunciava e a carne que se despedia; era o corpo a preparar-se para baixar à terra. E aquele brilho na sua pele era feito de produtos, de cremes, de artifícios. A pele já não brilhava só por brilhar, como antigamente. Aquelas rugas finas que começavam a amarrotar-lhe os olhos lembravam-lhe as pontas dos dedos, quando era criança e se deixava ficar demasiado tempo no banho. Era como se a vida que já passara por ela fosse essa água leitosa, quase fria, que ela tentava recuperar, abrindo a torneira da água quente, para renovar o banho. Para reviver e alongar aqueles minutos de intimidade. A vida era aquela banheira, onde se balançava, fazendo a água oscilar, para cá e para lá, divertindo-se a cada vez que, no seu entusiasmo, a deixava derramar-se sobre o chão de mármore. Evocava o acto sensual de mergulhar a cabeça na água tépida e sentir o cabelo pesado, que dançava em todas as direcções, como as algas ou os corais que via nos documentários da televisão. E então sentia-se sereia e estudava os ombros que se arredondavam e o tronco que se tornava violoncelo.
Já não sentia o peso do cabelo sobre os ombros, mesmo que continuasse a usá-lo comprido. Para onde fora o peso do seu cabelo, que hoje mais não era do que uma nuvem de algodão? Estaria já a subir ao céu, sem o saber? Estariam os anjos à sua espera, tornando-lhe o corpo assim, leve, para lhe facilitar a viagem? Tudo aquilo era tão prematuro, tão cheio de maldade. Andava desencontrada do corpo e não conseguia convencê-lo a comparecer ao encontro dela, por mais que o tentasse. Parecia-lhe murcho, amuado, cansado da vida. Mas ela ainda não se cansara. Porquê, então, aquela pressa em partir?

1 comentário:

  1. Envelhecer, por fora como a senhora que descreves, mas nunca por dentro, para encontrar força para ir em frente e sorrir.
    Essa força faz-nos mais jovens e bonitas.
    Beijinhos

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