segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Mau génio

Tinha chovido a noite inteira e o temporal não me deixara dormir em paz. A minha vida andava em banho-maria, tudo pendurado, sem seguimento nem solução; os problemas a multiplicar-se, como ervas daninhas. Estava farta. Hoje não faço nada, não quero saber, pensei. Fico em casa, que se lixem. Resolvi dedicar-me às arrumações. Com o mau humor com que eu estava, seria o dia ideal para me ver livre de um monte de tralhas e arranjar espaço. Isto vai, isto vai, isto vai…tudo fora. Por algumas horas, mais não fiz do que executar os gestos de uma pessoa normal, medíocre. Como a pessoa que eu era até esse dia. Quando remexia numa pilha anónima e caótica, coberta de poeira e teias de aranha, encontrei uma lamparina e puxei-lhe o lustro, com fúria e um sorriso algo sarcástico, confesso. Um génio saiu, como não podia deixar de acontecer, e postou-se à minha frente. Não, não fiquei toda contente, pelo contrário. Quando o gajo apareceu, senti um cheiro horroroso, como o de alguém que não toma banho há que tempos e achei insultuosa aquela invasão de propriedade. Ok, era um génio, porreiro e tal, mas podia ter-se lavado antes, ou não podia?
- Porque me libertaste... - disse ele.
- Sim, sim, já sei, três desejos.
- Eeh...não. UM desejo. Apenas um.
- Então, mas… não eram três?! Aaii…
- Eeeh...não. Deve estar a confundir-me com outra história qualquer.
- E que merda é essa de começar as frases todas por “eeeh…..”? Não vê que isso é irritante? Que é isso do “eeeh…”?!
- Eeeh…
Respirei fundo.
- Ok, deixe lá. Bom, quantos desejos são, afinal?
- Eeeh…um.
- Mas isso é uma vigarice, ouviu?! Como é que esperam que uma pessoa concentre num desejo só tudo aquilo que quer da vida, diga-me lá?! É sempre a mesma coisa! Uma pessoa farta-se de trabalhar, o dinheiro não chega para nada, não vale nada, espremem-nos até ao tutano com leis idiotas, impostos e o diabo a sete, e quando chega a hora, não há nada para ninguém! As reformas uma miséria, a corrupção está em todo os lado, a começar por cima, a justiça é o que se vê, a educação…
Eu ia lançada, ficaria ali a resto do dia a descarregar a minha fúria naquele idiota, mas ele interrompeu-me:
- Olhe, desculpe, mas não tenho o dia todo. Afinal, o que é que vai ser?
O estúpido falava como se eu estivesse à frente do balcão de uma pastelaria. Era mesmo de amador, aquilo, o raio do génio era mesmo mau. Foi então que tive um instante de clarividência, uma verdadeira epifania:
- Ai é? Então já sei! Quero que TODOS os meus desejos se realizem.
Irritado, o génio rosnou, lançando os braços ao ar, em desespero, e fugiu a voar. Assim, sem um adeus.
Nunca ninguém se tinha lembrado dessa? Azarinho, temos pena. Até hoje, o tipo nunca mais me apareceu. A bem dizer, não me faz falta nenhuma. Para mau génio, basto eu.

2 comentários:

  1. Que fixe! Bem feito para esse génio de meia tigela, que só concedia um desejo!

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  2. Ainda bem que gostaste! Se suprimires o palavrão, podes sempre usá-la com os teus queridos alunos, nem que seja numa pequena encenação bem-humorada de Natal, ou para eles ilustrarem.
    Um grande beijinho,
    Vera

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