Queridos blogueiros, estou de saída para o Porto e só regresso na madrugada de Domingo. Fiquem bem, aproveitem o feriado e tenham um excelente fim de semana. Até lá!
Não se deixem enganar pelas riscas cor-de-rosa. Os dias são (d)escritos com todas as cores.
quinta-feira, 30 de abril de 2009
quarta-feira, 29 de abril de 2009
Carlos Ruiz Zafón
Quando terminei a leitura d'"A Sombra do Vento", em Junho de 2007, concluí que há muito tempo não ficava tão agarrada a um livro. Ganhou inúmeros prémios nacionais e internacionais, e é um autor que provoca vendas estrondosas, o que transforma Zafón num escritor de bestsellers, é verdade, mas o facto não merece que olhemos para os seus livros com desconfiança. Digo isto, pois sei que existe por aí o preconceito face à Quantidade, como se, para se ser magistral, fosse forçosa a postura do Escritor Maldito, Sofredor, vivendo numa miséria imoral, enrodilhada os vícios de álcool, drogas, prostitutas e outras tragicomédias do género. Não, Zafón parece ser uma pessoa normal, um tímido rato de biblioteca, que vive pacatamente entre os seus livros, os seus fãs, as obrigatórias manobras de marketing e os compromissos que a editora lhe exige. Enfim, é um escritor dos tempos modernos. So what? Agora leiam os livros dele e tirem as vossas conclusões.
"O Jogo do Anjo", uma prequela d' "A Sombra do Vento", foi-me oferecido pelo meu filho, no Natal de 2008.
Contrariamente à opinião de alguns leitores, gostei ainda mais deste segundo romance, passado também em Barcelona, mas desta feita, nos Anos 20 (no primeiro, a acção decorre nos Anos 50). Carlos Ruiz Zafón escreve divinalmente. Algumas personagens, inspiradas noutras épocas, são tão irresistíveis, que dei por mim a reler "A Sombra do Vento" este ano, pois coração e cérebro recusavam-se a despedir-se. Até Janeiro de 2008, nunca consegui escolher um "livro favorito", pois são tantas as fases por que vamos passando, tantos os humores, tantas as leituras, tantos os autores, tantos os registos utilizados e sensações que nos provocam, que não podemos, sem mais nem menos, retirar desse enorme baú UM livro apenas. Agora posso. São muitos os livros que amo, mas "O Jogo do Anjo" conquistou-me por completo, a ponto de rir e de chorar sozinha e ficar (imagine-se!) abraçada ao livro quando terminei as 568 páginas. Este livro é meu, meu, MEU! Encheu-me as medidas de tal forma, que se me tornou sagrado.
Zafón consegue, em ambos os livros, uma união perfeita entre a época da narrativa e o universo Romântico (assume as suas influências: Dickens, irmãs Bronte, Vitor Hugo, etc.) oferecendo-nos páginas deliciosas, dramáticas, inteligentes, sensíveis, preenchidas por enredos de cortar a respiração. Brinda-nos com passagens maravilhosas, com diálogos cheios de humor, com parágrafos que nos obrigam a reflectir, ou que nos provocam risos e sorrisos. Fermín de las Torres ficará para sempre como uma das minhas personagens preferidas de todos os livros.
Que talento magistral para construir e escrever histórias. Obrigada, querido Zafón, por ter escolhido ser escritor.
terça-feira, 28 de abril de 2009
Desprendimento
A noite ia avançada. Na sala do bar soavam os últimos acordes, excessivamente altos para o cansaço que já sentia. De olhos brilhantes e voz entaramelada pelo álcool, o médico confessou-me:
"Quando fui para lá, larguei tudo. No início, não tinha nada: nem carro, nem mota, nem mobília, nem dinheiro. E acho que nunca fui tão feliz como naquela época...",
E com o olhar distante de quem acaba de fazer uma descoberta acerca de si mesmo, concluiu:
"É engraçado..."
segunda-feira, 27 de abril de 2009
Crónica IV: Mia Couto e uma sessão de autógrafos
"Em África os mortos não existem (...) Há um Deus que está desempregado, pois o mundo sempre existiu."
"Tenho caderninhos. Quando saio como biólogo, levo o caderninho das coisas sérias. Quando quero ser levado a sério, apresento-me como biólogo. Às vezes troco os cadernos..." (risos na sala)
"A velhice é uma coisa que eu ainda não sei pensar. Há dias em que eu sou muito velho. A velhice não tem solução. Há que esperar que o tempo nos surpreenda, nos dê alguma coisa."
Nos primeiros minutos não tomei muita atenção, pois estava ainda presa à consciência de estar ali. Como eu, muitos se haviam deslocado à biblioteca de Oeiras às 21.30 de um dia de semana, para vir conhecer o autor das palavras "abençonhadas".
Mia bichanava frases cheias de poesia escondida, como se, falando connosco, alinhavasse um livro novo, em que nós, leitores, representássemos um pequeno papel. Quando Mia se calava, eu aproveitava para espreitar o ambiente da sala. Reparei na gentileza própria de quem ama os livros e que escolhe estar ali e não em frente ao televisor, depois de um dia de trabalho. O ar abafado era atenuado por um espírito de boa vontade, que fazia saltar os novos das cadeiras, para dar lugar aos velhos ou a quem vinha carregado de livros. Naquelas duas horas, senti um clima de cumplicidade entre os que desejam acrescentar algo de mais profundo aos seus dias. Às tantas, Mia soltou uma frase deliciosa ao falar de africanidade, definindo-a assim: “dar um beijinho numa cenoura”.
Mia fez-nos rir várias vezes e senti-me grata por isso. Era algo de certo, estar ali, naquela estranha sintonia com um grupo de gente anónima com quem reparti risos e sorrisos. Partilhou connosco a sua fama de espírito sonhador, desde a infância, que muitas vezes o salvava de responsabilidades, no seio familiar: “é melhor não, ele vai estragar, vai perder, vai partir…”.
Ao chegar o momento mais esperado, a multidão transformou o seu comportamento, na ânsia de levar para casa os livros autografados. Em poucos minutos, o autor parecia afundado num mar de gente. Aguentou estoicamente o entusiasmo dos leitores (mesmo quando entornaram o seu copo de água sobre a minúscula secretária), dando autógrafo atrás de autógrafo, deixando-se fotografar com máquinas digitais e telemóveis, que surgiam como pragas. Uma leitora vibrante agarrou-lhe no braço direito, e exclamou: “o senhor é um sonhador!” (como se ele precisasse que lho lembrassem).
Mia fez-nos rir várias vezes e senti-me grata por isso. Era algo de certo, estar ali, naquela estranha sintonia com um grupo de gente anónima com quem reparti risos e sorrisos. Partilhou connosco a sua fama de espírito sonhador, desde a infância, que muitas vezes o salvava de responsabilidades, no seio familiar: “é melhor não, ele vai estragar, vai perder, vai partir…”.
Ao chegar o momento mais esperado, a multidão transformou o seu comportamento, na ânsia de levar para casa os livros autografados. Em poucos minutos, o autor parecia afundado num mar de gente. Aguentou estoicamente o entusiasmo dos leitores (mesmo quando entornaram o seu copo de água sobre a minúscula secretária), dando autógrafo atrás de autógrafo, deixando-se fotografar com máquinas digitais e telemóveis, que surgiam como pragas. Uma leitora vibrante agarrou-lhe no braço direito, e exclamou: “o senhor é um sonhador!” (como se ele precisasse que lho lembrassem).
Da minha parte, ficou uma sensação reprimida de sabor a pouco: queria ter-lhe dito algo que o fizesse lembrar-se de mim, mas ao observar aquele cenário, vendo “o meu Mia” ser submergido por um rebanho faminto de livros em punho, só tive coragem de lhe oferecer um olhar carinhoso e directo, enquanto dizia: “para a Vera, por favor”, agradecendo, sorrindo, tentando transmitir-lhe com os olhos um bocadinho de paz no meio daquele caos. Gosto de acreditar que algo o fará recordar o instante em que estivemos juntos, segurando o seu livro a quatro mãos, numa viagem-relâmpago de origem e destino incertos, como são os livros eternos que os escritores partilham com o mundo.
domingo, 26 de abril de 2009
Serradura
Mário de Sá-Carneiro faleceu em Paris, no dia 26 de Abril de 1916.
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta...
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade...
Deixo-vos na companhia de um poema que ilustra bem a época em que viveu e o estilo Modernista, que tanta poeira levantou no seu tempo.
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.
Da minha Alma estofada. E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.
E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No indindável sofá
Estendida, a perna traçada,
No indindável sofá
Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.
Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o "Matin" de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:
Quando eu mal me precate,Lê o "Matin" de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta...
Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.
Folhetim da "Capital"
Pelo nosso Júlio Dantas
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...
Pelo nosso Júlio Dantas
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...
O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...
Qualquer dia, pela certa,
Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:
Mas como achar um remédio?
Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:
O que era fácil --- partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel
A gritar "Viva a Alemanha!"
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade...
Vou deixá-la - decidido
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.
(MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO)
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.
(MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO)
sábado, 25 de abril de 2009
Ecce Homo
Desbaratamos deuses, procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança, imaginando
Uma causa maior que nos explique.
Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera heróis e homens e poetas.
Pois Deuses somos nós. Deuses do fogo
Malhando-nos a carne, até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,
Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue, raiva, desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.
(JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS)
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Livros, livros, livros
Presentemente, estou a ler três livros ao mesmo tempo:
"Timbuktu", de Paul Auster
"Pássaros Feridos", de Colleen McCullough
"The Silver Donkey", de Sonya Hartnett
"Timbuktu", de Paul Auster
"Pássaros Feridos", de Colleen McCullough
"The Silver Donkey", de Sonya Hartnett
Os livros preenchem os cantos da casa. A única divisão onde não os há, por uma questão de respeito, é nas casas de banho. Na cozinha, uma edição velhinha do Pantagruel assinada por Maria de Lurdes Modesto, e romances onde a culinária tem um papel de protagonista: "Chocolate", "Cinco Quartos de Laranja", e "Vinho Mágico" de Joanne Harris, "Como Água para Chocolate", da Laura Esquivel, "Anita na Cozinha".
Na sala, sobre as portas e janelas, pousados em estantes improvisadas, no quarto, no escritório, um pouco por todos os cantos... lá estão eles.
Os livros são um estranho amparo. Uma certeza, uma promessa, uma incógnita. Há livros que compro e que venho a ler dez, quinze anos depois. Porque sim, porque outros se foram atravessando no caminho. Livros que me chegam com honras de convidados, livros arrogantes que empurram os outros, livros sedutores que conseguiram os seus intentos e acabaram espojados nas minhas mãos.
Amados livros!
Hoje é o Dia Internacional do Livro.
Festejem-no!
Comprem um... ou dois.
A Feira do Livro vem aí. Ai, tentação.
Na foto acima, numa composição frustrada e modesta da minha parte, espreita a avó Mimi, que nos contava histórias maravilhosas e que tinha sempre uma grande lata cheia de bolachas shortcake, embrulhadas em papel vegetal. Histórias, mimos, livros, petiscos e guloseimas, tudo misturado na mesma tigela.
quarta-feira, 22 de abril de 2009
Crónica III: Uma Padeira de Aljubarrota
Entrei no pequeno centro comercial da Ericeira, para comprar um ramo de flores. Deparei-me com a dona, uma mulher jovem, baixinha e rija, que transpirava energia. Cumprimentei-a com ar interrogativo, cheirando algo que acabara de acontecer por ali, mas que eu não testemunhara. Relatou-me a aventura, com ar zangado ainda. Não estava com medo, apenas agitada e bem disposta:
Ao passar por ela um fulano a correr, com ar suspeito, pensou: “ai vais a correr?... Então, é porque fizeste alguma…!”
Prega-lhe uma rasteira, e segura-o até os nove (sim, nove) elementos da GNR chegarem. Fiquei a saber que era ex-mulher de um GNR e actual mulher de um militar, formada em artes marciais e sem mãos a medir com a malandragem:
“O GNR, quando o agarrou, disse-me: ai Sónia, só tu...”
Contou-me tudo isto, enquanto fazia um bouquet com os jarros que eu escolhera, enfeitando-o com tudo o que tinha na loja.
Prega-lhe uma rasteira, e segura-o até os nove (sim, nove) elementos da GNR chegarem. Fiquei a saber que era ex-mulher de um GNR e actual mulher de um militar, formada em artes marciais e sem mãos a medir com a malandragem:
“O GNR, quando o agarrou, disse-me: ai Sónia, só tu...”
Contou-me tudo isto, enquanto fazia um bouquet com os jarros que eu escolhera, enfeitando-o com tudo o que tinha na loja.
“Eu disse-lhe! Ai estás a olhar para a minha cara? Eu também já fixei a tua! O meu marido já está tão habituado, que quando chegou, perguntou-me:” O que é que se passou?” - e eu respondi: “nada, nada!” – foi o meu pai, que estava aí, que lhe contou! – ele nem ligou, para ele é só mais uma! Ai comigo, não têm sorte nenhuma, eles que me venham aqui à loja, que vão ver!"
Soube então que quando o segurança vira o brasileiro a fugir com um saco, ligara para a polícia, e tinha ficado quieto, a ver. Não, brincas, eu é que não sou parvo. Quando a Super-Sónia agarrou o homem e ali ficou, a segurá-lo, as pessoas pararam a olhar para os dois, com um ar muito sério, como se aquela visão improvável fizesse parte de alguma encenação. Só que não havia equipa de filmagens, era só mais um dia na vida normal da Sónia.
Soube então que quando o segurança vira o brasileiro a fugir com um saco, ligara para a polícia, e tinha ficado quieto, a ver. Não, brincas, eu é que não sou parvo. Quando a Super-Sónia agarrou o homem e ali ficou, a segurá-lo, as pessoas pararam a olhar para os dois, com um ar muito sério, como se aquela visão improvável fizesse parte de alguma encenação. Só que não havia equipa de filmagens, era só mais um dia na vida normal da Sónia.
Interrompi-a a tempo de evitar que me pulverizasse os jarros com purpurinas e saí dali com o meu bouquet, convencida de me ter cruzado com uma reencarnação da Padeira de Aljubarrota. Os patifes que se cuidem!
Imagem retirada de:
terça-feira, 21 de abril de 2009
A poesia é....
A poesia é como uma anedota, que não pode explicar-se. Se a dissecarmos, de bisturi na mão, à luz fluorescente de um laboratório, a alma evapora-se-lhe como éter e jamais aprisionamos a sua complexidade dentro de nós. A poesia bebe-se, a prosa mastiga-se.
segunda-feira, 20 de abril de 2009
O Silêncio
O silêncio é como uma grande caixa onde cabem todas as palavras. Toca-nos mais, porque o seu poder de dizer é infinito, cheio de uma abstracta incerteza. Por isso falamos, quando a hora é delicada e triste – para quebrarmos esse mutismo e tornarmos a tristeza mais pequena, rebaixando-a com a insignificância das palavras que escolhemos.
domingo, 19 de abril de 2009
A tarde que tardava
Desligou o telemóvel, o computador e a TV, ligou o aquecedor no quarto, cerrou todas as janelas, arrumou os sacos do supermercado, pôs os bifes a descongelar e disse-lhe:
- Anda.
Dormiram o resto da tarde e acordaram às nove para abrir outra garrafa de vinho e fazer o jantar. Os compromissos ficaram por cumprir e os corpos agradeceram.
sábado, 18 de abril de 2009
Sapatos de homem? É relativo...
"O estudo em geral, a busca da verdade e da beleza são domínios em que nos é consentido ficar crianças toda a vida."
(ALBERT EINSTEIN)
"Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta."
(ALBERT EINSTEIN)
Einstein faleceu em 1955, há precisamente 54 anos. Reparem nos sapatos que ambos calçam, mulher e marido, e no fatinho deste gigantesco senhor. Tudo é relativo, não há dúvida. Foto deliciosa. Obrigada, Rita!
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Adivinha VI
Eu tenho cinco filhos
Mas não lhes dou de comer
Gosto de os ver brincar
Para não adormecer.
Ando sempre em apertos
Desde a mais tenra idade
Há apertos e apertos
E os meus são de amizade
Sou a mãe de muitos gestos
Em mil comunicações
Usam-me a torto e direito
Para mostrar emoções
Gosto de os ver brincar
Para não adormecer.
Ando sempre em apertos
Desde a mais tenra idade
Há apertos e apertos
E os meus são de amizade
Sou a mãe de muitos gestos
Em mil comunicações
Usam-me a torto e direito
Para mostrar emoções
Ferramenta dos artistas
E de mil trabalhadores
Cozinheiros, massagistas
E até senhores doutores
Manuseiam tantos livros
E ainda não adivinharam?
Já vos disse quem sou eu
Se calhar, não repararam!
(VERA DE VILHENA, "Quem sou eu?")
quinta-feira, 16 de abril de 2009
Dia Mundial da Voz
À falta de uma boa tradução do poema "Grita", do "Crepusculário" de Neruda, deixo-vos igualmente bem acompanhados com Vinicius de Moraes.
Cuidem da Voz e das palavras. Cuidem-se!
AUSÊNCIA
(VINICIUS DE MORAES)
Eu deixarei que morra em mim
o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar
senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa
como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser
tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho
nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás
a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite
e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa
suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência
do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento,
do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente,
a tua voz serenizada.
quarta-feira, 15 de abril de 2009
O humor de Leonardo da Vinci
Hoje é o aniversário do nascimento de Leonardo da Vinci. Deixo-vos duas pequenas pérolas do mestre:
RESPOSTA DE UM PINTOR
"Perguntaram a um pintor por que motivo, fazendo ele figuras tão belas que eram coisas mortas, fizera os filhos tão feios. Então o pintor respondeu que as pinturas as fez de dia e os filhos de noite."
DITO DE UM DORMINHOCO
"Disseram a um tal que se levantasse da cama porque o sol já ia alto e ele respondeu: - Se eu tivesse uma viagem tão longa e tantas coisas que fazer como ele, também já estaria levantado, mas tendo tão pouco caminho para fazer, ainda me deixo ficar deitado."
(IN "LEONARDO DA VINCI, Bestiário, Fábulas e outros Escritos" - selecção, tradução e apresentação de José Colaço Barreiros, Colecção Biblioteca Editores Independentes, 2007)
terça-feira, 14 de abril de 2009
Os cafés de Simone de Beauvoir (Paris)
Hoje é o 23º aniversário Da morte de Simone de Beauvoir. Hoje, 14 de Abril, é também o Dia Mundial do Café. A autora passou muitas horas da sua vida nos cafés de Paris, pelo que uma homenagem aos dois faz todo o sentido.
Simone nasceu no quarto da mãe (boulevard du Montparnasse, 103), morada que habitou até aos onze anos. O Café "La Coupolle" ficava mesmo em frente. Já adulta, Simone de Beauvoir corrigiu aí os trabalhos de casa das alunas, escreveu a Sartre, trabalhou no romance "A Convidada" e no segundo volume da sua autobiografia.
O "Café de Flore", na boulevard Saint-Germain, era outro dos lugares onde se sentia bem. e em cujo primeiro andar se refugiava, em plena Segunda Guerra, por não ter aquecimento no quarto de hotel onde estava hospedada. Dizem que chegava cedo, cerca das oito da manhã, para ler e escrever. Era aqui que se encontrava com Sartre e outros intelectuais da época: escritores, actores, artistas.
Claro que não poderia faltar o café "Les Deux Magots", em Saint-Germain-des-Près, onde se encontrou com Bost, seu amante (por sinal, marido da sua amiga Olga...). Aqui pousava, especialmente entre 1945 e 1947, para trabalhar no seu diário, ler e beber. No entanto, era interrompida demasiadas vezes por amigos e desconhecidos, o que tornou o "Les Deux Magots" demasiado indiscreto para o seu gosto.
Simone frequentava o café "La Dôme", em Montparnasse, 108, já desde 1928 e quando conheceu Sartre, no ano seguinte, passou a ser um dos cafés de eleição. Trabalhava sentada nos bancos do fundo, durante o dia, ou no terraço, na companhia de Sartre, à noite.
Não poderia falar-vos de Simone de Beauvoir sem referir o "Hotel La Louisiane", onde viveu entre 1943 e 1946, os anos mais profícuos. Aos 35 anos, publicou o seu primeiro romance, "A Convidada". Jean-Paul Sartre vivia no mesmo andar, ao fundo do corredor. Sim, amigos, amantes, mas cada um com o seu quarto, a sua individualidade. Simone escreveu aqui ensaios e os romances "O Sangue dos Outros", "Todos os Homens São Mortais" e a peça de teatro "Les Bouches Inutiles". Foi nesta época que fundou, com Sartre, a revista "Les Temps Modernes".
Viveu muitos anos em quartos alugados e só aos quarenta teve o seu primeiro apartamento com cozinha... mas sem WC. Os tempos modernos, pelos vistos, eram outros.
Deixo-vos com alguns pensamentos desta grande mulher, retirados da obra "Os Mandarins":
"De dia para dia, acaba por deixar-se incompleta a própria vida."
"Não é cobardia viver como se sente."
SAÚDO-VOS COM UMA BOA CHÁVENA DE CAFÉ, ESSA BENDITA BEBIDA NEGRA E RECONFORTANTE QUE, EM BOA HORA, FOI INVENTADA.
Para mais, espreitem este site:
http://www.simonebeauvoir.kit.net/ segunda-feira, 13 de abril de 2009
Dias Cinzentos
Há dias em que o céu cinzento me deixa cinzenta por dentro. Como empecilho, parece enrodilhar-se-me às pernas e aos pés, fazendo-me tropeçar nos próprios gestos. Um dia desses percorre-me o sangue e eu a gastá-lo, a desgastá-lo, até que se dissolva e decida largar-me de vez, cuspindo-me mal digerida, para entregar os meus restos ao sol.
domingo, 12 de abril de 2009
Domingo de Páscoa
Cresci na balbúrdia dos anos 70, em que as refeições em família constituíam, por si só, um acontecimento. Pai, mãe, cinco filhos (mais tarde também os namorados dos filhos, em dias de festa), cão, periquitos. Nos dias que precediam o Domingo de Páscoa, a minha mãe distribuía tarefas como um general bem treinado. Nós, os filhos, cumpríamos a nossa parte o melhor que sabíamos: arear pratas e cobres; aspirar; arranjar o jardim; cozinhar; lavar loiça; estender a enorme toalha de renda; limpar o pó; pôr a mesa...
Eu via surgir os serviços especiais (secretos?) dos armários, extravagantes, delicados e cheios de cor. A sala de jantar ia tomando forma: talheres alinhados como soldados prontos para o combate; guardanapos dispostos em leque; a longa mesa repleta de pilhas de pratos, bandejas, terrinas, molheiras; chávenas de porcelana tão fina como casca de ovo; em vez de dois castiçais, duas canecas em forma de frades franciscanos, recheadas de pascoínhas amarelas.
As pessoas a chegar, a excitação: o Zé e a avó Mimi, que traziam sempre um queque ou um bolo de arroz para o Suki, o cão; os tios, os primos, mais terrinas e pratos com doces e bolos da tia Luísa. Vestíamos a rigor, mas a minha irmã Sofia e eu acabávamos o dia perfeitamente descompostas, correndo pelas escadas, jardins e salas, a querer devorar cada minuto da festa. De barriga mais do que cheia, víamos desenhos animados do Tom & Jerry, do Bugs Bunny ou do Duffy Duck. O meu pai intercalava o seu cachimbo com a máquina fotográfica e nunca faltava a foto de grupo no terraço, para não nos esquecermos uns dos outros. Numa em particular, recordo um chapéu da Coca-cola, que tinha acabado de entrar no país, pelas mãos do tio Duarte, que a promovia. As recordações nunca se conseguem agarrar totalmente, pois as pessoas fogem das fotografias para outros lugares. O passado vai-se desvanecendo, sumindo com os seus contornos, para dar lugar ao Tempo e ao que este traz na manga. O grupo vai crescendo, transformando-se; os bebés de ontem são hoje homens de barba e os avós que julgávamos eternos já não surgem num wolkswagen cor de café com leite, com um saco de bolos na mão e a dádiva da sua presença. Ontem éramos nós que caçávamos os ovos de chocolate no jardim; hoje, os nossos filhos suspiram e dizem: "Ò mãe, já estou um bocado crescido para caçar ovos de chocolate, não achas?"
Sim, querida Meluxa, parecia tudo tão mais fácil, e o tempo, esse, tinha a benevolência de um santo. Eduquemos os nossos filhos para que também eles cultivem a importância dos encontros entre família: o privilégio de estar sentado defronte a uma mesa generosa, rodeados de riso; das histórias bizarras e distantes dos mais vividos e vivaços; de discussões da actualidade, que se acendem com vinhos e digestivos. Ressuscitemos a Páscoa para que, em 2010, eu não esteja aqui, a escrever a meio da tarde, mas sim em Sesimbra ou no Campo de Sant'Ana, a iniciar a reabertura da sessão gastronómica com um segundo prato de queijos e doces!
NOTA - À falta da foto em questão, encontrei uma imagem da criança que eu era, em 1977. Ah, saudosa e despreocupada infância...
sábado, 11 de abril de 2009
Para a criançada: A Virgínia Cozinheira e a Virgínia Costureira
É véspera do Domingo de Páscoa. A Virgínia Cozinheira encontra-se na varanda a pendurar lençóis. Tem os cabelos grisalhos unidos num carrapito impecável. No rosto, duas eternas rosetas e olhos azuis ainda bonitos, por trás das lentes grossas. Na pele traz o cheiro da canela e da erva-doce, à custa de estender a massa do folar sobre a grande mesa de mármore, com os braços vigorosos e bem treinados pelo ofício. Debruçada na corda da roupa, escuta a voz da Virgínia Costureira, sua vizinha da frente, cuja figura franzina e nariz adunco lembram um pardal.
“Ò vizinha, olhe lá os seus lençóis! Se quiser isso cosido traga cá, que eu coso!”
A Virgínia Cozinheira, que via a vida através dos seus cozinhados, estava muito mal-humorada nessa manhã, pois deixara esturricar um tabuleiro de biscoitos de amêndoa. Por isso respondeu com maus modos:
“Está a insinuar que os meus lençóis estão a precisar de ir para dentro do tacho com água a ferver?! Olhe que eles estão velhinhos, é verdade, mas sei cuidar bem deles, ouviu? Saem das minhas mãos sempre limpos, IMPECÁVEIS, OUVIU??...”
A outra tentou explicar-se:
“Não é nada disso, mulher, estou a falar do...”
“ Acha que tenho que ferver os meus lençóis para lhes tirar as nódoas, de tão encardidos que estão, é isso? Quais nódoas? Diga-me lá, mulher, onde é que vê as nódoas?!...”
Entre as duas existia sempre esta confusão:
Para a Virgínia Costureira, “Coser” escrevia-se com “S” e era tarefa que pedia agulhas e linhas; para a Virgínia Cozinheira, “Cozer” soava a “cozinha”, a “cozinhados”, a “cozinheira” e a “cozido”. Tratava-se então de um grande malentendido. Como ambas as mulheres eram teimosas que nem mulas, nenhuma dava o braço a torcer. Com a segunda interrupção, a Virgínia Costureira perdeu a paciência:
“Mas que mau feitio! Quem é que está a falar de nódoas? Irra, que é desconfiada! Estou só a dizer-lhe que não me custa nada coser-lhe esse lençol! Não seja orgulhosa!”
A outra, sem compreender ainda, já gritava:
“Ainda por cima insiste! Já agora diga-me, vá, como é que está à espera de cozer um lençol enorme destes? Onde, diga-me lá, no seu fogão, é? Onde é que tem o tacho para meter um lençol destes? Isso é que eu queria ver! Pois, porque os meus lençóis são de casal, ouviste?”
Agora estava a ser cruel, pois sabia da tristeza que a outra sentia por nunca ter encontrado marido e por dormir na velha cama da sua infância. Ofendida, a Virgínia Costureira perdeu a paciência:
“Eu não acredito! Pois então está aqui uma pessoa de boa fé a tentar ajudar e a vizinha ainda me ofende?! Parece impossível! Quer dormir com a roupa toda estragada, olhe, durma, que eu cá já não me ralo! Mas depois não me venha cá pedir batatinhas, que eu não lhas dou!”
E, dizendo isto, saiu da sua varanda, batendo as portadas com estrondo.
A outra saiu à rua, resmungando:
“Batatinhas? Em minha casa NUNCA faltam as batatas! A batata nova, a batata velha e as batatinhas para os assados! Pedir-te batatas, eu? Isso é que era doce! E por falar nisso, TAMBÉM TENHO BATATA-DOCE, ESTÁS A OUVIR?
(Só se tratavam por tu quando estavam zangadas uma com a outra).
“Vem cá fora e fala comigo, se és mulher de raça, que isto não fica assim!”
Exasperada, a outra saiu para o pátio, enquanto resmungava entre dentes:
“Eu não quero mais conversas contigo, ouviste bem? Foi a última vez que me ofereci para te fazer arranjos na roupa! Nem uma bainha sequer, acabou-se! Fica lá com o rasgão no lençol, a ver se eu me ralo!"
Ambas tinham bom coração, o sangue é que era quente…
“O quê?” – Perguntou a cozinheira, começando a entender o equívoco – “A vizinha disse… arranjar?”
“Arranjar, pois! O que havia de ser? Não reparaste que o teu lençol de linho branco tem um rasgão num dos cantos? Podia cosê-lo num minuto e ficava como novo, mas tu...”
A cozinheira interrompeu-a, muito envergonhada pela sua precipitação e agarrou-se a ela, apertando-a nos braços:
“Ó minha amiga, a vizinha desculpe lá o mau jeito!... É que eu hoje acordei torta e julguei que estava a fazer pouco da minha roupa!
Aliviada, a costureira limpou o suor que lhe corria pela cara e exclamou:
“Pronto, pronto. Eu estava falar do rasgão, mulher, do rasgão!”
Zangavam-se por disparates como este, e eram tão diferentes como o sol e a lua. Só o nome era igual; mas quando faziam as pazes, dava gosto ver... até à trapalhada seguinte com o “coser” e o “cozer”.
Contavam-se na aldeia vários episódios do mesmo género. Uma vez, a cozinheira apresentara-lhe um ovo cozido partido ao meio e perguntara:
“Quer um ovo cozido?”
A costureira, estranhando o tom autoritário que nem pedia “se faz favor”, tinha ouvido:
“Quero o ovo cosido!” e respondera: “Claro, é para já…!”
Pouco depois, devolvera-lhe o ovo cozido...cosido, pois as metades haviam sido unidas com linha preta e mal amanhada, em jeito de vingança:
“Ò vizinha, olhe lá os seus lençóis! Se quiser isso cosido traga cá, que eu coso!”
A Virgínia Cozinheira, que via a vida através dos seus cozinhados, estava muito mal-humorada nessa manhã, pois deixara esturricar um tabuleiro de biscoitos de amêndoa. Por isso respondeu com maus modos:
“Está a insinuar que os meus lençóis estão a precisar de ir para dentro do tacho com água a ferver?! Olhe que eles estão velhinhos, é verdade, mas sei cuidar bem deles, ouviu? Saem das minhas mãos sempre limpos, IMPECÁVEIS, OUVIU??...”
A outra tentou explicar-se:
“Não é nada disso, mulher, estou a falar do...”
“ Acha que tenho que ferver os meus lençóis para lhes tirar as nódoas, de tão encardidos que estão, é isso? Quais nódoas? Diga-me lá, mulher, onde é que vê as nódoas?!...”
Entre as duas existia sempre esta confusão:
Para a Virgínia Costureira, “Coser” escrevia-se com “S” e era tarefa que pedia agulhas e linhas; para a Virgínia Cozinheira, “Cozer” soava a “cozinha”, a “cozinhados”, a “cozinheira” e a “cozido”. Tratava-se então de um grande malentendido. Como ambas as mulheres eram teimosas que nem mulas, nenhuma dava o braço a torcer. Com a segunda interrupção, a Virgínia Costureira perdeu a paciência:
“Mas que mau feitio! Quem é que está a falar de nódoas? Irra, que é desconfiada! Estou só a dizer-lhe que não me custa nada coser-lhe esse lençol! Não seja orgulhosa!”
A outra, sem compreender ainda, já gritava:
“Ainda por cima insiste! Já agora diga-me, vá, como é que está à espera de cozer um lençol enorme destes? Onde, diga-me lá, no seu fogão, é? Onde é que tem o tacho para meter um lençol destes? Isso é que eu queria ver! Pois, porque os meus lençóis são de casal, ouviste?”
Agora estava a ser cruel, pois sabia da tristeza que a outra sentia por nunca ter encontrado marido e por dormir na velha cama da sua infância. Ofendida, a Virgínia Costureira perdeu a paciência:
“Eu não acredito! Pois então está aqui uma pessoa de boa fé a tentar ajudar e a vizinha ainda me ofende?! Parece impossível! Quer dormir com a roupa toda estragada, olhe, durma, que eu cá já não me ralo! Mas depois não me venha cá pedir batatinhas, que eu não lhas dou!”
E, dizendo isto, saiu da sua varanda, batendo as portadas com estrondo.
A outra saiu à rua, resmungando:
“Batatinhas? Em minha casa NUNCA faltam as batatas! A batata nova, a batata velha e as batatinhas para os assados! Pedir-te batatas, eu? Isso é que era doce! E por falar nisso, TAMBÉM TENHO BATATA-DOCE, ESTÁS A OUVIR?
(Só se tratavam por tu quando estavam zangadas uma com a outra).
“Vem cá fora e fala comigo, se és mulher de raça, que isto não fica assim!”
Exasperada, a outra saiu para o pátio, enquanto resmungava entre dentes:
“Eu não quero mais conversas contigo, ouviste bem? Foi a última vez que me ofereci para te fazer arranjos na roupa! Nem uma bainha sequer, acabou-se! Fica lá com o rasgão no lençol, a ver se eu me ralo!"
Ambas tinham bom coração, o sangue é que era quente…
“O quê?” – Perguntou a cozinheira, começando a entender o equívoco – “A vizinha disse… arranjar?”
“Arranjar, pois! O que havia de ser? Não reparaste que o teu lençol de linho branco tem um rasgão num dos cantos? Podia cosê-lo num minuto e ficava como novo, mas tu...”
A cozinheira interrompeu-a, muito envergonhada pela sua precipitação e agarrou-se a ela, apertando-a nos braços:
“Ó minha amiga, a vizinha desculpe lá o mau jeito!... É que eu hoje acordei torta e julguei que estava a fazer pouco da minha roupa!
Aliviada, a costureira limpou o suor que lhe corria pela cara e exclamou:
“Pronto, pronto. Eu estava falar do rasgão, mulher, do rasgão!”
Zangavam-se por disparates como este, e eram tão diferentes como o sol e a lua. Só o nome era igual; mas quando faziam as pazes, dava gosto ver... até à trapalhada seguinte com o “coser” e o “cozer”.
Contavam-se na aldeia vários episódios do mesmo género. Uma vez, a cozinheira apresentara-lhe um ovo cozido partido ao meio e perguntara:
“Quer um ovo cozido?”
A costureira, estranhando o tom autoritário que nem pedia “se faz favor”, tinha ouvido:
“Quero o ovo cosido!” e respondera: “Claro, é para já…!”
Pouco depois, devolvera-lhe o ovo cozido...cosido, pois as metades haviam sido unidas com linha preta e mal amanhada, em jeito de vingança:
“Aqui tens o teu ovo cosido e para a próxima, se quiseres o trabalho bem feito, pede-me com bons modos!”
UMA PÁSCOA FELIZ E MUITO DOCE PARA TODOS!
(Texto: VERA DE VILHENA)
sexta-feira, 10 de abril de 2009
Confissões de uma cidade
Acordo com o pulsar da raça humana. Saem nas embarcações metálicas, e navegam-me nas artérias, que estremecem à sua passagem. Deixam-se transportar, velozes ou sonolentos, por músculos e tecidos, até ao meu coração. Sou ser vivo, animado pelo despertar dos que por mim escorregam, impacientes. Arrumam-se e encolhem-se, tornando-me em árvore gigantesca que alberga, nas suas ramagens, os frutos por amadurecer.
O dia enlourece, a corrente sanguínea acelera. Cada gota encontra o seu lugar, conquistado como um difícil jogo de cadeiras. Vasculham-me o corpo, esmiuçando-me encruzilhadas e recantos, em movimentos vulgarizados e domesticados de velhos amantes. Mudam-me os contornos, em intervenções cirúrgicas que me desfiguram, humanizando-me, ao ponto de ser a minha presença imponente, irrespirável, ingovernável. Assim me consideram verdadeira, digna da minha condição: quando o esboço do meu corpo se traduz numa teia multiplicada de vias, que levam qualquer um a qualquer lugar.
Em mim cultivam as artes e as árvores, para que também eu respire, num jogo de dá-e-tira típico das metrópoles.
O sol amorna-se: eles preguiçam ou apressam os gestos, desperdiçando o entardecer. Forjam-se documentos; erguem-se pontes e edifícios; trocam-se produtos e capitais; enterram-se gotas exangues; trazem-se, à luz dourada, novas gotas de sangue fresco e promissor.
Também eu me espreguiço, exausta de me sentir espezinhada e apalpada, ensaiando a retirada sem causar danos: assim me despeço de muitos, mandando-os para casa nas minhas veias de alcatrão, enquanto fico na companhia dos que agora chegam, de olhos nocturnos, desencontrados com a luz.
Acendem-me néons, cores brilhantes e nervosas, que me deixam dormente e insone. Não é, porém, uma sensação que me desagrade. Aproveito para espreitar a vida dentro das casas, onde eles fingem repousar.
Em horas de vigília vêm cobrir-me, por vezes, com um manto de neblina. Ali fico, quieta, olhando os cambiantes do céu, que se vai vestindo de azul.
Ninguém me pergunta se quero aqui ficar.
Por minha vontade fugiria para o campo, mas dizem que, se tal sucedesse, seria como ciclone que tudo devora no caminho: a paisagem desmoronar-se-ia, pois também uma tela verdejante se pode demolir num segundo. É pena. Gostaria, ao menos, de lhe fazer uma visita, se estas raízes invasoras não deixassem sulcos tão profundos no solo, e na memória dos que me alimentam. A Terra, essa, sacode-me por vezes as costas, como que a queixar-se do excesso de bagagem. Tento explicar-lhe que não sou eu, são os homens que brincam aos castelos de areia em cima de mim.
O dia enlourece, a corrente sanguínea acelera. Cada gota encontra o seu lugar, conquistado como um difícil jogo de cadeiras. Vasculham-me o corpo, esmiuçando-me encruzilhadas e recantos, em movimentos vulgarizados e domesticados de velhos amantes. Mudam-me os contornos, em intervenções cirúrgicas que me desfiguram, humanizando-me, ao ponto de ser a minha presença imponente, irrespirável, ingovernável. Assim me consideram verdadeira, digna da minha condição: quando o esboço do meu corpo se traduz numa teia multiplicada de vias, que levam qualquer um a qualquer lugar.
Em mim cultivam as artes e as árvores, para que também eu respire, num jogo de dá-e-tira típico das metrópoles.
O sol amorna-se: eles preguiçam ou apressam os gestos, desperdiçando o entardecer. Forjam-se documentos; erguem-se pontes e edifícios; trocam-se produtos e capitais; enterram-se gotas exangues; trazem-se, à luz dourada, novas gotas de sangue fresco e promissor.
Também eu me espreguiço, exausta de me sentir espezinhada e apalpada, ensaiando a retirada sem causar danos: assim me despeço de muitos, mandando-os para casa nas minhas veias de alcatrão, enquanto fico na companhia dos que agora chegam, de olhos nocturnos, desencontrados com a luz.
Acendem-me néons, cores brilhantes e nervosas, que me deixam dormente e insone. Não é, porém, uma sensação que me desagrade. Aproveito para espreitar a vida dentro das casas, onde eles fingem repousar.
Em horas de vigília vêm cobrir-me, por vezes, com um manto de neblina. Ali fico, quieta, olhando os cambiantes do céu, que se vai vestindo de azul.
Ninguém me pergunta se quero aqui ficar.
Por minha vontade fugiria para o campo, mas dizem que, se tal sucedesse, seria como ciclone que tudo devora no caminho: a paisagem desmoronar-se-ia, pois também uma tela verdejante se pode demolir num segundo. É pena. Gostaria, ao menos, de lhe fazer uma visita, se estas raízes invasoras não deixassem sulcos tão profundos no solo, e na memória dos que me alimentam. A Terra, essa, sacode-me por vezes as costas, como que a queixar-se do excesso de bagagem. Tento explicar-lhe que não sou eu, são os homens que brincam aos castelos de areia em cima de mim.
Vera Vê (pseud. de Vera de Vilhena).
Texto publicado na "Egoísta", Março 2006
quinta-feira, 9 de abril de 2009
Choro Bandido
Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu para mim
Você nasceu para mim
Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu para mim
Você nasceu para mim
Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim
Mesmo que os romances sejam falsos
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim
Mesmo que os romances sejam falsos
Como o nosso são bonitas,
Não importa, são bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons
Música: Chico Buarque (Brasil), 1985
Letra: Edu Lobo (Brasil)
Espreitem o video no link abaixo, onde terão oportunidade de ver três dos compositores mais talentosos do Brasil, juntos à roda do piano: Tom Jobim (piano, contracantos e direcção musical), Chico Buarque (voz) e Edu Lobo (voz e guitarra). Belíssimo. Já não se fazem canções assim...
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons
Música: Chico Buarque (Brasil), 1985
Letra: Edu Lobo (Brasil)
Espreitem o video no link abaixo, onde terão oportunidade de ver três dos compositores mais talentosos do Brasil, juntos à roda do piano: Tom Jobim (piano, contracantos e direcção musical), Chico Buarque (voz) e Edu Lobo (voz e guitarra). Belíssimo. Já não se fazem canções assim...
quarta-feira, 8 de abril de 2009
Chico Esperto
Chegou de olhos tristes e ar miserável, tremendo de frio ou de pânico. Uma orelha torta, permanentemente espetada, como se alguém lhe tivesse instalado uma pequena armação de arame ou sofresse quaisquer efeitos colaterais, algo deslocalizados, ao cair num caldeirão de Viagra. Aconchegou-se nos nossos braços, tão indefeso e meigo, que foi impossível resistir-lhe. Ao fim de uma hora, já corria atrás da bola de ténis, e a cauda saiu de entre as patas traseiras e começou a abanar. Comeu ração, pediu mais, bebeu água, ladrou, desafiou-nos para novas brincadeiras. Desde ontem que anda colado a nós o dia inteiro, junto aos nossos pés, escada acima, escada abaixo, pois não se deixa intimidar pela altura dos degraus. É extremamente vivaço, curioso, brincalhão, meigo, leal e muito esperto; todas as ferramentas para vir a tornar-se num bom cão. O resto, a educação e os cuidados e mimos, são por conta dos donos que teve a sorte de encontrar. Agora é o nosso Chico Esperto. Ia ser abatido em breve, apenas com dois ou três meses de idade. Terá sido por isso que nos chegou abatido? Por um instinto paralelo ao que seria o seu destino? Foi uma boa forma de festejarmos o Dia Mundial da Saúde. Bem-vindo a casa, Chico!
segunda-feira, 6 de abril de 2009
João Aguiar: Navegador Solitário
O meu filho de 13 anos, que além dos Harry Potters e das crónicas de Ricardo Araújo Pereira pouco mais leu por sua livre iniciativa, chegou-se no outro dia ao pé de mim e perguntou:
- Ò mãe, já ouviste falar de um livro chamado "Navegador Solitário?".
Abrindo muito os olhos, sorrindo imediatamente a seguir, exclamei:
- Se eu já ouvir falar do Navegador Solitário? Ò Hugo, esse é só um dos livros favoritos da mãe e o preferido do Nanã (padrasto)! Porquê?
- É que há uma amiga minha que anda a lê-lo e eu li bocados e gostei imenso.
Céptica ainda (pois ele não é o que se poderia chamar de um leitor compulsivo), receei que esse interesse se devesse à primeira parte do livro, em que o protagonista e narrador, de quinze anos, começa a escrever um diário cheio de erros, obrigado pela madrinha. Depois havia a considerar as partes "picantes" e os tabus abordados abertamente no livro, que teriam constituído, concerteza, motivo de galhofa colectiva entre os colegas da escola. "Não", pensei, "ele não tem maturidade literária para entender as nuances desse livro delicioso, o humor, a sátira, a inteligência na forma como o autor nos vai mostrando as transformações por que passa o narrador, Solitão Fernandes, à medida que avançamos na leitura...". Não dei importância ao assunto, até que, semanas mais tarde, vim a saber que, afinal, havia esperança!
- Mãe, estou a ler o livro e a adorar! É muita giro! Gosto imenso da maneira como ele escreve e é um diário, como eu gosto, porque sou "buéda" cusco (risos, ou melhor, lol)!
- Ainda bem que estás a gostar, filhote, fico muito contente! Então e a parte da política, não te chateia...? - Perguntei ainda.
- Nããão! Eu não gosto é dos telejornais, que são uma seca! No livro ele faz com que a política tenha piada, como o Ricardo Araújo Pereira!
Palavras para quê? Obrigada João Aguiar, por pôr o meu filho a ler literatura fora dos ciclos didácticos dos programas escolares; por fazer com que ele pegue num livro - não por obrigação - mas por prazer.
Este é um livro real, cheio de ensinamentos sobre as realidades da vida e em cujas páginas encontramos humor, ingenuidade, inteligência, ternura, sátira. Um livro adequado a várias gerações e que muita gente desconhece. Leiam. Vale a pena.
(Fotografia: "Navegador Solitário", by Nanã Sousa Dias)
Link para foto "Navegador Solitário":
domingo, 5 de abril de 2009
Domingo em Família
A pressa dos últimos preparativos: tudo a postos e... são horas!
Chegaram com o sol e trouxeram oferendas. A mesa compôs-se, a Diana Krall apareceu como de costume, para temperar o ar com aquela sonoridade que lhe é própria, adoçando as conversas que regávamos com aperitivos, vinhos e digestivos. Esteve-se tão bem, que as horas passaram a correr. Foi tudo provado e aprovado: o paté de atum com cebola, a sopa de agrião, o caril de gambas com coco (obrigada Pedro e João, pelo caril cambojano!), a salada de rúcula, o gelado de limão com lima. Salame de chocolate para os miúdos, que acabou por ser para todos. Como não podia faltar, houve café aromatizado com canela, servido nas chávenas douradas da ex-Checoslováquia. Um passeio pelo eucaliptal para o estômago mastigar o almoço, outros discos de jazz bem velhinho e conservador, como convém.
Despedidas, abraços e beijos.
Um segundo "take" a quatro bocas. Regressou-se ao vinho, aos queijos, ao paté de atum. Falámos de livros e autores, de João Aguiar, da história do ballet russo, de Almada Negreiros e da geração de Miró, Satie, Stravinsky e Ravel. Sairam com "O Tigre Sentado" debaixo do braço, assinado e enviado pelo autor e transformado, por isso, num bem precioso.
Chegaram com o sol e trouxeram oferendas. A mesa compôs-se, a Diana Krall apareceu como de costume, para temperar o ar com aquela sonoridade que lhe é própria, adoçando as conversas que regávamos com aperitivos, vinhos e digestivos. Esteve-se tão bem, que as horas passaram a correr. Foi tudo provado e aprovado: o paté de atum com cebola, a sopa de agrião, o caril de gambas com coco (obrigada Pedro e João, pelo caril cambojano!), a salada de rúcula, o gelado de limão com lima. Salame de chocolate para os miúdos, que acabou por ser para todos. Como não podia faltar, houve café aromatizado com canela, servido nas chávenas douradas da ex-Checoslováquia. Um passeio pelo eucaliptal para o estômago mastigar o almoço, outros discos de jazz bem velhinho e conservador, como convém.
Despedidas, abraços e beijos.
Um segundo "take" a quatro bocas. Regressou-se ao vinho, aos queijos, ao paté de atum. Falámos de livros e autores, de João Aguiar, da história do ballet russo, de Almada Negreiros e da geração de Miró, Satie, Stravinsky e Ravel. Sairam com "O Tigre Sentado" debaixo do braço, assinado e enviado pelo autor e transformado, por isso, num bem precioso.
Que Domingo tão bem passado. Urge aumentar o comprimento da mesa, Sr. Carpinteiro!
Obrigada a todos. Ficou a vontade de repetir a dose. É bom estar em família.
http://niilismo.net/galeria/pictures/vida_e_vinho_tinto.jpgsábado, 4 de abril de 2009
Shadows in the Sun (The Shadow Dancer)
Um filme delicioso, para passar da melhor forma uma tarde de Domingo. Nesta comédia romântica, Harvey Keitel é Weldon Parish, um escritor célebre que se recolheu numa aldeia da Toscânia, e não escreve nem publica desde a morte da mulher. O filme provoca emoção e riso e tem como pano de fundo uma aldeia do interior da Itália, que parece parada no tempo. Joshua Jackson é Jeremy, o jovem editor que chega da cidade num descapotável, pronto a convencê-lo a voltar a escrever. Porém, não irá ter a missão facilitada. Isabella, a filha de Weldon, é irresistível. O desenvolvimento da história é muito curioso e enche a alma dos mais românticos.
Espreitem o trailer e vejam o filme em DVD! O making-of é muito completo e mostra o ambiente de diversão e o nível de entrega de toda a equipa. Talvez por isso o resultado final tenha sido tão simpático.
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Crónica: As Palavras são Trampolins II
Chegaram enrolados no turbilhão próprio da sua juventude, enchendo o espaço de ruído e movimento. Assente a poeira, pude ver que traziam nos olhos a vontade de ali estar. Lembrei que não se encontravam naquele auditório para ser avaliados, mas apenas para se divertirem um pouco e aprenderem a brincar com as palavras, que não eram “bichos papões”.
No jogo “Vamos Desabafar”, encheram as folhas de papel com frases como “estou farto da escola” e “não gosto da professora”, para não desperdiçarem a liberdade daqueles míseros 90min, em que, tal como no Carnaval, ninguém os levaria a mal: Os mais irreverentes:
”Eu não gosto de ceder//É fixe brincar/É bom quando é verão/Quem me dera estar em férias/Eu gosto de gozar”;
“Estou farto da escola/É fixe brincar/Não é justo estudar/ É bom quando não há aulas//Eu detesto T.P.C./Quem me dera ter dinheiro/Eu não gosto de andar/Eu gosto de gostar”;
Os mais inspirados:
”Estou farto do meu gato/Porque está sempre a comer/Tudo o que está no meu prato/Eu eu assim posso morrer”;
“Da roseira nasce a rosa/Da lua nasce o luar/E eu nasci para estudar”;
“Gosto de nadar no chocolate/Colher conchas de baunilha”;
“Estou farto de ver o Pinheiro/Não é justo, o pai dele é carteiro//Eu detesto comer dobrada/É uma grande trapalhada//Eu não gosto de macarrão/Porque tenho um cão”
Os mais intimistas, sinceros, inspirados:
“Quem me dera ser rica/É fixe ter um pai maravilhoso/É bom quando está a família reunida/Eu gosto muito da minha família//Estou farta de sopa/Gosto da minha roupa/Eu detesto estar chateada/Eu gosto de ter um papagaio com poupa”
“É fixe E.V.T./É bom quando faço tudo na perfeição/Quem me dera ser pintor/Eu gosto dessa profissão”
Os mais inclassificáveis:
“Não é justo copiarem pelos outros/Eu detesto que me batam no braço quando me dói/Eu não gosto de peixe//O sol é bué fixe quando está calor/É bom quando está calor/Quem me dera ter asas/Eu gosto de carne”.
Os egos eram diversos, havia-os de todos os tamanhos: quando chegou a hora de assinarem as folhas com os seus textos, surgiram letras minúsculas vindas dos que, durante os jogos, haviam implorado “não me chame a mim!”, contrastando com assinaturas em tamanho garrafal e cabeças erguidas, com o orgulho de quem está seguro de si e assina, além do nome, “sou o maior”.
”Eu não gosto de ceder//É fixe brincar/É bom quando é verão/Quem me dera estar em férias/Eu gosto de gozar”;
“Estou farto da escola/É fixe brincar/Não é justo estudar/ É bom quando não há aulas//Eu detesto T.P.C./Quem me dera ter dinheiro/Eu não gosto de andar/Eu gosto de gostar”;
Os mais inspirados:
”Estou farto do meu gato/Porque está sempre a comer/Tudo o que está no meu prato/Eu eu assim posso morrer”;
“Da roseira nasce a rosa/Da lua nasce o luar/E eu nasci para estudar”;
“Gosto de nadar no chocolate/Colher conchas de baunilha”;
“Estou farto de ver o Pinheiro/Não é justo, o pai dele é carteiro//Eu detesto comer dobrada/É uma grande trapalhada//Eu não gosto de macarrão/Porque tenho um cão”
Os mais intimistas, sinceros, inspirados:
“Quem me dera ser rica/É fixe ter um pai maravilhoso/É bom quando está a família reunida/Eu gosto muito da minha família//Estou farta de sopa/Gosto da minha roupa/Eu detesto estar chateada/Eu gosto de ter um papagaio com poupa”
“É fixe E.V.T./É bom quando faço tudo na perfeição/Quem me dera ser pintor/Eu gosto dessa profissão”
Os mais inclassificáveis:
“Não é justo copiarem pelos outros/Eu detesto que me batam no braço quando me dói/Eu não gosto de peixe//O sol é bué fixe quando está calor/É bom quando está calor/Quem me dera ter asas/Eu gosto de carne”.
Os egos eram diversos, havia-os de todos os tamanhos: quando chegou a hora de assinarem as folhas com os seus textos, surgiram letras minúsculas vindas dos que, durante os jogos, haviam implorado “não me chame a mim!”, contrastando com assinaturas em tamanho garrafal e cabeças erguidas, com o orgulho de quem está seguro de si e assina, além do nome, “sou o maior”.
Houve música, para descontrair. Escutaram 3 canções do CD "Vera e os seus Amigos", cantaram, marcaram o ritmo, enquanto eu tentava que prestassem atenção aos versos e ao uso que podemos dar às palavras. Fascinou-os o facto de ser eu a autora das letras e a voz de uma delas. "És cantora, a sério??", como se fosse uma profissão impossível, irreal, algo que só acontece muito longe do seu mundo.
No jogo “Palavras Trocadas”, em que eram dadas quadras em rima para trabalhar, houve quem atirasse as regras do jogo pela janela e começasse a escrever o que bem lhe apeteceu: “Da árvore nasce a folha/ A folha onde eu desenho/Desenho imensas coisas/Escrevo muitas palavras/Eu já sou um poeta de karaoke/E um grande cantor de rock!”. Trouxe para casa textos como este: “Jogo à bola com amigos/ Se então como um brinco/Nado, deitado, grito e salto, /Ou brinco com um gelado”.
Guardo comigo folhas enfeitadas com estrelas, luas, rostos de meninas e flores e houve até quem escrevesse em letras gordas: “Muito obrigado!”. Quem agradece sou eu: a estes alunos, à professora Ilídia, ao Sr. Hélder (obrigada pelo apoio técnico!), à Biblioteca Municipal de Torres Vedras, pela oportunidade desta experiência.
No fim, houve fotografia de grupo e troca de contactos. Joana, Fernando, Virgínia, Honório, Ofélia, Rodrigo, Catarina, Gonçalo, Raquel, Nuno, Ana Bárbara, João, Rodrigo, enfim, todos vocês… têm o meu carinho, por serem assim, tão vivos, tão imperfeitos, revelando a vossa fatia de poetas e artistas.
No jogo “Palavras Trocadas”, em que eram dadas quadras em rima para trabalhar, houve quem atirasse as regras do jogo pela janela e começasse a escrever o que bem lhe apeteceu: “Da árvore nasce a folha/ A folha onde eu desenho/Desenho imensas coisas/Escrevo muitas palavras/Eu já sou um poeta de karaoke/E um grande cantor de rock!”. Trouxe para casa textos como este: “Jogo à bola com amigos/ Se então como um brinco/Nado, deitado, grito e salto, /Ou brinco com um gelado”.
Guardo comigo folhas enfeitadas com estrelas, luas, rostos de meninas e flores e houve até quem escrevesse em letras gordas: “Muito obrigado!”. Quem agradece sou eu: a estes alunos, à professora Ilídia, ao Sr. Hélder (obrigada pelo apoio técnico!), à Biblioteca Municipal de Torres Vedras, pela oportunidade desta experiência.
No fim, houve fotografia de grupo e troca de contactos. Joana, Fernando, Virgínia, Honório, Ofélia, Rodrigo, Catarina, Gonçalo, Raquel, Nuno, Ana Bárbara, João, Rodrigo, enfim, todos vocês… têm o meu carinho, por serem assim, tão vivos, tão imperfeitos, revelando a vossa fatia de poetas e artistas.
quinta-feira, 2 de abril de 2009
O zero que não é zero
Recomeçar do zero. Que desperdício, que trabalheira? Não. Uma revelação que nos atira para um novo percurso. Evolução. Nível de exigência superior. Os zeros com que nos cruzamos a meio do caminho nunca são verdadeiros zeros, são antes zeros à direita.
Recomeçar.
Gosto de acreditar em recomeços: reescrever, refazer, revoltar, revirar, recuperar. Temos o trauma do palimpsesto (Nanã, esta é para ti): achar, à partida, que o que se esconde por detrás da obra é inegavelmente mais precioso. Porquê? E se o pergaminho que se desvenda for uma primeira tentativa cândida em relação à obra que se lhe sobrepôs, como quem varre o lixo para baixo do tapete?
E se, por outro lado, uma vez descoberta a nova obra, existir ainda uma terceira, que é, por fim, a Arte mais procurada?
Recomeçar a escrever. Do zero que não é zero, como quem raspa camadas de um velho pergaminho, buscando a sua essência. Escrever a partir de algo que aprendemos Hoje. A Verdade que estava lá, ocultada por camadas de tintas coloridas e didácticas. Confiar no primeiro instinto. Desprezar a segurança das velhas ferramentas (as instituições, a moral, o politicamente correcto) e escrever para si próprio, como quem escreve um diário que nunca será publicado. Dar um chuto nas regras, trilhar um novo caminho, sem rede, sem medo nem vergonha. De contrário, tratar-se-á de um embuste bem disfarçado, que resulta numa cópia insípida, incolor de tanta cor com que a enfeitámos; uma oferta inócua embrulhada em tanto lustro e laçarotes que, no fim, é inevitável a desilusão. Recomecemos, pois. Obrigada, Alice.
(Imagem: palimpsesto de Arquimedes, séc. II A.C.)
quarta-feira, 1 de abril de 2009
Mentira piedosa
Quando o azar nos persegue é tramado. Parece uma sombra, uma nuvem negra que nos chove em cima, como se fôssemos o Cascão. Bem diz o ditado que uma desgraça traz sempre companhia. Cobardia? Terá medo de andar sozinho, o azar? Porque não nos chega orgulhosamente só? Seria simpático da parte dele. Algo me diz, porém, que a simpatia não faz parte dos seus encantos. Cola-se-nos à pele como parasita, envenenando o sangue dos nossos dias. Calculo que muitas das vezes seja acusado sem justa causa, nem provas conclusivas. Não, não falo do caso Freeport, já não posso ouvir falar no Freeport. Falo de um azar injuriado, que, como da fama já não se livra, arca com a culpa dos nossos gestos. Talvez o azar seja uma invenção nossa, para justificarmos as consequências de cada erro. À impossibilidade de juízo, pedimos sorte. Sim, venha ela! Venha a sorte ao nosso reino. Por favor. Nem que seja uma mentira piedosa.
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